A terra não vos alimentará?

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Nossos tupinambás admiram como os franceses e outros estrangeiros se dão ao
trabalho de ir buscar o seu arabutan[1]. Uma vez um ancião me perguntou:

“Por que maírs e pêros[2] vêm de tão longe buscar lenha para se aquecerem? Vocês não têm madeira em sua terra? ”

Respondi que tínhamos muitas, mas não dessa qualidade. Além disso, não as queimamos como pensava, mas extraímos tintura, assim como eles faziam com seus fios de algodão e plumas.

O velho replicou imediatamente:

“Por acaso, vocês não têm o suficiente?”

“Sim.” Eu disse: “Em nosso país, há revendedores que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outros produtos do que você possa imaginar. Um deles compra toda a madeira brasileira a qual os navios conseguem carregar “.

“Ah!” O selvagem respondeu. “Você me diz maravilhas”.

Ele acrescentou depois de ter compreendido bem o que lhe disse:

“Mas, esse homem é tão rico que ele não morre?”

“Não, ele morre como qualquer outro.”

Os selvagens são grandes oradores. Eles geralmente costumam abordar qualquer assunto até o fim, então ele me perguntou novamente:

“Quando eles morrem, quem recebe o que eles possuem?”

“Seus filhos, se eles os tiverem. Se não, seus irmãos ou parentes próximos herdam suas posses”.

“De fato” – o ancião que, como você verá, não era um tolo, continuou – “agora vejo que vocês, maírs, são tão loucos, pois atravessam o mar e sofre um grande incômodo para vir aqui. Vocês trabalham para acumular riqueza para seus filhos ou para aqueles que lhes sobrevivem! A terra que lhes nutriu não será suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos seguros de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores preocupações”.

Este discurso, resumido aqui, mostra como esses pobres selvagens americanos, como bárbaros como os julgamos, desprezam aqueles que ameaçam suas vidas cruzando os mares para buscar madeira e riqueza do Brasil.

Pois, como são estúpidos, esses selvagens atribuem maior importância à natureza e à fertilidade da terra do que ao poder e à providência de Deus.

Jean de Léry. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil. (1578)[3]


Esse trecho da crônica de viagem do aventureiro e missionário calvinista francês Jean de Léry (1534 — 1611) ao Brasil reflete as primeiras percepções coloniais ambíguas do “bom selvagem”. É notória a influência dessa visão de Léry em Os Canibais, célebre ensaio de Montaigne. É uma visão romântica, mas nem por isso, menos sensata.

NOTAS

[1] Pau-Brasil.

[2] Franceses e portugueses.

[3] Em português, veja a tradução de Sérgio Milliet: Viagem à terra do Brasil.

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