Utopia… Utopia… Repetirá a sensatez rasteira. Utopia, sim; sejamos utopistas, bem utopistas; contanto que não esterilizemos o nosso ideal, esperando a sua realização de qualquer força imanente à própria utopia; sejamos utopistas, contanto que trabalhemos. Manoel Bomfim, 2008, p. 290.
BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008 [1905].
Livro singular para sua época, refutava a ideia que a degeneração oriunda da mistura de raças causava o atraso econômico, político, intelectual e moral do continente. Bomfim argumentava que a colonização parasita e o sentimento de inferioridade diante dos padrões europeus relegavam a América Latina à sua situação deplorável.
O parasitismo refletia em várias dimensões, desde a mentalidade até as relações econômicas e políticas. Bomfim aponta que a colonização ibérica inciou sob a influência da inquisição, enquanto outros países europeus viviam o Renascimento. O autor critica a falta de imaginação: entre os latino-americanos se valorizavam a cultura livresca, ostensória, pedante, negligenciando a investigação científica, parasitando da inquirição alheia. O parasitismo do senhor do escravo refletia na estrutura política conservadora: mudavam-se as pessoas, a estrutura parasita continuava a mesma. A hereditariedade social transmitia a cada geração os mesmos males.
O autor não via com pessimismo o Brasil, apesar dessas críticas. Apontava a educação (na época elitizada e concentrada em poucas capitais) como meio de promover a melhora do país. Rejeitava a educação pernóstica bacharelesca, tão bem descrita pelo seu contemporâneo Lima Barreto, almejava um ensino que primasse pelo desenvolvimento tanto social quanto individual. Essa educação crítica que evitava o ensino “árido, estéril, difícil e inútil” (BOMFIM apud ALVES FILHO, 1979, p.42) antecedeu as propostas de Paulo Freire para uma educação libertadora.
A obra é recheada de citações eruditas. O autor inspira-se em pensadores europeus e nos exemplos das nações em franco desenvolvimento na época. Abomina a politicagem mesquinha então (e infelizmente hoje) vigente, bem como o fanatismo político em nome de pretextos ou detalhes marginais:
A política praticante é uma engrenagem terrível; não só desseca as almas, como estreita os pontos de vista; falseia o critério e o julgamento de tal forma, que nós vemos o comum dos militantes absorvidos por questões de um interesse social menos que secundário, indiferente aos assuntos capitais; as questões que verdadeiramente influem sobre a evolução da nacionalidade não são lembradas sequer. Ocupam-se de uns tantos detalhes, a que dão o pomposo nome de questões financeiras ou políticas, e o resto não tem valor. Para eles, que diariamente sobrecarregam as gerações futuras, contraindo empréstimos ou adiando dívidas, para que os vindouros as paguem – para eles, o preparo dessas mesmas gerações futuras não chega a ser uma questão política. Nem compreenderão; talvez, como um Montesquieu podia afirmar que a “educação – inclusive a educação intelectual – é o principal dever de uma República”. (BOMFIM, 2008, p. 286).
Grafado alternativamente como Manuel Bonfim (1868 — 1932), além das letras o médico sergipano dedicou-se a lecionar psicologia na Escola Normal no Rio de Janeiro. Suas interpretações quanto ao “atraso” do Brasil contrariava as teorias racistas e deterministas do início do século XX. Filho de um vaqueiro que enriqueceu no comércio, Bomfim começou a escrever esse livro enquanto estudava na França, com Alfred Binet. Dessa passagem pela França resultou em sua difusão pioneira da psicologia e didática fundada em métodos científicos. Entretanto, não se limitou aos dogmas do positivismo vigente em sua geração. Além dessa obra, seus Através do Brasil (1910) com Olavo Bilac (1864-1934), O Brasil na América (1929), O Brasil na História (1930) e O Brasil Nação (1931) mantém-se como visões acuradas e vigentes sobre o país.
As influências de Bomfim são visíveis na sociologia anti-racista de Florestan Fernandes, na geografia socialmente crítica de Josué de Castro, nas posturas anti-colonialistas de José Carlos Mariátegui e pós-coloniais de Eduardo Galeano. Não é de se espantar, todos esses foram leitores de Bomfim. Antecipou também as teorias de dependências em economia política de Raul Prebisch, Celso Furtado e André Gunder Frank.
OUTRAS EDIÇÕES
Centro Edelstein. Scielo Livros DOI http://dx.doi.org/10.7476/9788599662786 Disponível em pdf e epub.
FUNDAR. Biblioteca Básica Brasileira.
VEJA TAMBÉM
GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim: “pensador da história” na Primeira República. Rev. Bras. Hist., São Paulo , v. 23, n. 45, p. 129-154, July 2003 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882003000100006&lng=en&nrm=iso>. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882003000100006.
BOMFIM, Manuel apud ALVES FILHO, Aluízio. Pensamento político no Brasil — Manoel Bomfim: um ensaísta esquecido. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979, p.42