Ih…não deu: dissonância cognitiva

O que acontece quando a profecia falha?

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No começo dos anos 1950, o psicólogo social Leon Festinger (1919 –1989) investigava movimentos que esperavam o fim do mundo quando apareceu a oportunidade de acompanhar um deles. Ao abrir seu jornal deu com a notícia de que uma vidente, Marian Keech — pseudônimo de Dorothy Martin (1900–1992)—, recebera uma mensagem de seres superiores. Segundo a vidente, os Guardiões do desconhecido planeta “Clarion”  viriam destruir a Terra no dia 21 de dezembro de 1954. Os fiéis seguidores de Keech seriam arrebatados em discos voadores (a mania dos UFOs iniciou-se no pós-guerra).

Keech juntou um grupo de onze “buscadores” (Seekers). Eram todos pessoas normais, psicologicamente estáveis e sem expressar fanatismo religioso. Abandonaram seus trabalhos e se mudaram para o interior do Michigan para esperar a fatídica data. Festinger com seu time acompanhou de perto. Nada aconteceu.

No dia seguinte ao fim do mundo, Keech anunciou que os Guardiões levaram em conta a bondade e “a luz” da Fraternidade dos Sete Raios (nome que o grupo assumiu). Assim, desistiram de destruir a Terra. Os membros, exceto dois desapontados, aceitaram com entusiasmo a explicação e passaram a pregá-la, tentando ganhar adeptos.

Festinger chamou de desconfirmação a falha da profecia e esse fenômeno de coexistência de ideias conflitantes com as crenças do indivíduo de dissonância cognitiva. Esse desconforto psicológico seria resolvido por três caminhos, não mutuamente exclusivos:

  1. Tentar mudar uma ou outra crença em conflito;
  2. Adquirir novas informações que garanta a consonância da crença;
  3. Esquecer ou minimizar a importância das crenças em conflitos.

Com esses mecanismos, os seguidores de Keech racionalizaram suas expectativas frustradas.

Festinger lista cinco condições para alimentar a continuidade do movimento após a falha da profecia e provar sua tese da dissonância cognitiva:

  1. A crença deve ser tida com profunda convicção de modo que seja relevante ao crente;
  2. A crença deve ter causado atos difíceis de desfazer (tipo, abandonaram seus empregos e posses);
  3. A crença deve ter consequências no mundo que sejam observáveis pelo crente;
  4. A evidência da desconfirmação deve ser óbvia para o crente;
  5. O crente deve ter uma rede de suporte social de outros crentes.

Estudos posteriores

Outro psicólogo, Joseph Zygmunt, revisava alguns dos postulados de Festinger quando examinou também um evento milenarista. Entre as testemunhas de Jeová surgiu em 1966 uma profecia que em 1974 haveria o fim do sexto milênio desde a criação, culminando com um evento escatológico. Na data, como pode concluir, nada aconteceu. Diferente do grupo de Keech, não houve um avivamento de um fervor proselitista, mas reinterpretação das profecias e caça às bruxas de quem discordasse.

Zygmunt listou três modos de adaptação que poderiam ocorrer em organização maiores:

  1. A organização reconhece seus erros e corrige suas crenças;
  2. A organização acha um bode expiatório;
  3. A profecia é “espiritualizada”: reinterpretada como cumprindo de forma diversa ou de modo espiritual ou metafórico.

Lamar Keene em seu estudo sobre pessoas que continuam a acreditar em fenômenos sobrenaturais mesmo quando provados que são fatos normais ou fraudes cunhou o termo Síndrome do Verdadeiro Crente (True-believer syndrome).

Essa resenha de Jorge Luis Borges resume bem essa síndrome:

ALAN GRIFFITHS, OF COURSE, VITELLI!

O enredo não é totalmente original (…), mas entretém. O protagonista Roger Diss inventa uma anedota. Seus amigos não acreditam nele. Para persuadi-los, argumenta que o evento ocorreu por volta de 1850 no sul da Inglaterra e atribui a história ao “famoso violoncelista Vitelli”. Todos, claro, reconhecem o nome inventado. Encorajado pelo seu sucesso, Diss publica um artigo sobre Vitelli em uma revista local. Vários estranhos milagrosamente aparecem para apontar equívocos no artigo e nasce uma polêmica. Vitorioso, Diss publica uma biografia extensa de Vitelli, “com retratos, esboços e manuscritos”. Uma produtora de filmes adquire os direitos do livro e faz um filme em technicolor. Os críticos reclamam que o filme distorce os fatos sobre a vida de Vitelli…Diss se enrola em outra polêmica, mas acaba destruído. Furioso, decide revelar a fraude. Ninguém acredita nele e dizem que ele ficou doido. O mito coletivo é maior que ele. Certo Mr. Clutterbuck Vitelli defende a memória afrontada de seu finado tio. Um centro espírita em Tunbridge Wells recebe mensagens do falecido. Se fosse um livro de Pirandello, Diss acabaria acreditando em Vitelli.

A investigação da dissonância cognitiva insere-se no conjunto de teorias sobre a construção social da realidade. O estudioso das religiões J.Gordon Melton (1985) sumariza esses estudos sobre descofirmação. Para Melton, as profecias nunca falham, são mal interpretadas. A reconstrução das cosmovisões toma como base crenças não falseáveis.

Na antropologia, E.E. Evans-Pritchard (1937) demonstrou que a feitiçaria e a divinação ocorrem em qualquer sociedade, coexistindo com a lógica. O encantamento ou prognóstico que não se cumpriu resultariam mais a uma “leitura equivocada” ou da falta de fé por parte do participante. Desse modo, o sistema nunca erra.

Em tempos de pós-verdade, teorias da conspiração e notícias falsas virais a dissonância cognitiva é um dos fatores para as pessoas agarrarem às suas crenças mesmo quando contrárias às evidências.

Isso explicaria porque economistas mais sectários aderem às suas teorias, mesmo que a realidade jamais seja ceteris paribus.

A dissonância cognitiva explica a dificuldade de aceitar o mundo como ele é. Contra todas as evidências, o crente rejeita descobertas científicas, acredita que um dia eventualmente seu time vencerá ou insiste na esperança que um movimento político vai dar certo, mesmo quando o barco afundou faz tempo. Nascem daí os messianismos e milenarismos.

SAIBA MAIS

Evans-Pritchard, E.E.  (1937) Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande. Oxford University Press.

Festinger, Leon (1956). A Theory of Cognitive Dissonance. Stanford University Press.

Festinger Leon et al. (1956) When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study. University of Minnesota Press.

Keene, Lamar M. (1976). The Psychic Mafia. St. Martin’s Press; New York.

Melton, J.Gordon (1985)  “Spiritualization and Reaffirmation: What Really Happens when Prophecy Fails.” American Studies 26: 17–29.

Zygmunt, Joseph F. (1970) “Prophetic Failure and Chiliastic Identity: The Case of Jehovah’s Witnesses“. American Journal of Sociology, 75, 6, 926-948. DOI:http://dx.doi.org/10.1086/224846

A cabeça no lugar: mecanismos de defesa

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