Como os bacharelados interdisciplinares, frutos das artes liberais, cultivam a formação plena do indivíduo e à adaptação ao mercado.
por Leonardo Marcondes Alves*
A estória é comum: o bixo começou empolgado um curso qualquer e no início dera sua dedicação total. Depois vieram as festas, ficou de DP, ocorreram greves, sem contar as disciplinas que não formaram quórum. Foi impossível graduar em quatro anos, mas o atraso piorou porque o projeto final, estágio e TCC tomaram mais tempo que o esperado.
Enfim, formou-se seis anos depois.
O diploma, ultra-especializado em uma só área, veio já defasado. O conhecimento adquirido não lhe serve para atuar naquilo que estudara. A alternativa ao desemprego é trabalhar em algo que não possui o mínimo preparo. E provavelmente fará uma medíocre carreira sem qualquer paixão.
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Há alternativas a esse cenário de frustração.
O curso superior que não se começa obsoleto existe e é antigo. Chamado de Licenciatura em Estudos Gerais em Portugal, Liberal Arts nos Estados Unidos e Bacharelados Interdisciplinares no Brasil, esse programa tem o pressuposto de desenvolver a pessoa para a vida. Muito mais que especializações, esses cursos visam o domínio de habilidades de comunicação efetiva, socialidade relevante, capacidade lógico-analítica acurada, autonomia na produção do conhecimento e uma visão ampla de mundo.
O segredo é a liberdade acadêmica do aluno
Imagine a liberdade de escolher quais disciplinas cursar, qual classe frequentar, qual professor assistir. Por que não estudar Fotografia Digital, Literatura Francesa, Introdução às Relações Internacionais e Estatística neste semestre? Não gostou do horário? Sem problemas, há classes similares em outros horários ou no próximo período. Não gosta da aula estilo palestra? As mesmas disciplinas existem em formatos de seminários, leituras guiadas ou estudos independentes. Gostaria de conhecer um pouco de Medicina ou Contabilidade antes de decidir uma carreira? Basta se registrar para algumas classes nesses departamentos.
O estudante de artes liberais adapta-se rápido ao mercado: se interessou por aplicativos de celulares? Alguns professores já estão oferecendo sem burocracias aulas de Programação para Android, App Design, Business Intelligence. Assim, pode-se escolher as matérias capazes de treinar um especialista em aplicativos muito antes de surgir uma graduação específica em tal assunto.
Dentro de uma grade com disciplinas obrigatórias que visam uma formação ampla e profunda, além de concentrações (major e minor) em campos do saber, a graduação interdisciplinar possui outras vantagens. O aluno aumenta seus contatos sociais, trabalha sob a tutela de um orientador, conhece mais o mundo antes de tomar uma decisão profissional e sai mais maduro para o trabalho.
A educação superior interdisciplinar nasceu junto às universidades medievais
As Artes Liberais medievais eram meramente propedêuticas, pois visavam preparar o aluno para os cursos pós-bacharelado de teologia, medicina ou direito. Baseava-se em um currículo duplo, o trivium inicial (fundamentalmente habilidades verbais: gramática, retórica e dialética ou lógica) e depois o quadrivium (aplicações matemáticas: aritmética, geometria, astronomia e música). Por tal motivo, essas escolas superiores propedêuticas levavam o nome de studium generale e diplomavam seus alunos com o bacharelado. O próprio conceito de universidade porta o sentido dos alunos terem uma educação universal: era a possibilidades de os estudantes escolherem quais palestras e quais professores escutarem.
A graduação especialista consolidou como formação plena pelas ideias de Schleiermacher e Humboldt. No século XIX, o ideal de fazer da graduação uma educação completa e aplicada influenciou os modelos universitários vocacionais na Europa, no qual se estudava para sair especializado em uma profissão. Foi esse o modelo das grandes écoles francesas.
Naquele século, nos Estados Unidos, os bacharéis em programas interdisciplinares frequentavam os Liberal Arts Colleges com um pendor para os clássicos, as humanidades e as artes no sentido estrito da palavra. No começo do século XIX, as artes liberais nos Estados Unidos passaram a incluir o currículo aberto, além das disciplinas obrigatórias, uma possibilidade larga de seleção de disciplina eletivas. A formação profissional viria depois.
Nas paragens brasileiras, o Colégio Jesuítico da Bahia concedeu o primeiro diploma superior em Artes Liberais no ano 1575. Pouco tempo depois, a educação superior foi proibida na colônia e consequentemente morreram as artes liberais. O próximo brasileiro notável formado em artes liberais seria Gilberto Freyre, o qual se bacharelou nelas na Universidade Baylor no Texas.
Em Portugal, D.Pedro V tentou criar algo semelhante com o Curso Superior de Letras na Universidade de Lisboa em 1858, com o programa que abrangeria as letras (língua e literatura) clássicas e modernas, além de disciplinas de história e filosofia. Essa iniciativa mais tarde se transformou em um curso de letras profissionalizante. Recentemente, nessa mesma universidade criou-se a Licenciatura em Estudos Gerais, retomando a ideia original.
O escritor Henry Adams, neto e bisneto de presidentes norte-americanos, reclamava de sua educação liberal que não o preparara para as mudanças sociais e tecnológicas do final do século XIX e começo do XX. Mas, rápida para adaptar-se e remediar essas limitações, as Liberal Arts nos Estados Unidos adicionaram as ciências naturais e sociais além de disciplinas quantitativas em seus catálogos de cursos.
As propostas do filósofo e educador John Dewey que advocava uma educação profissionalizante, prática e menos elitista, formou uma síntese produtiva com a resistência de defensores da educação liberal como Mortimer Adler e Leo Strauss após a 2a Guerra. Esses educadores defendiam à adoção de um currículo baseado nos livros clássicos do cânone ocidental. A educação liberal Norte-Americana transformou-se quando os veteranos encheram as universidades graças ao GI Bill, vindo já maduros, com habilidades adquiridas e com algum treinamento formal militar.
Desde os anos 2000, universidades na Inglaterra, Alemanha, Suécia, Países-Baixos, Portugal e mesmo no Brasil apostam nos bacharelados interdisciplinares. As Artes Liberais nos Estados Unidos também passam por redefinições, já não é mais o curso elitista. Ficou caro pagar US$40 mil e enviar os filhos para fazerem festas em campus universitários idílicos e voltarem com um diploma sobre a música bizantina. Com a crise econômica, tornou-se trivial o aluno conciliar duas habilitações: administração e inglês, linguística e computação, teatro e direito ou outras combinações.
Essa combinação entre educação superior e educação profissional é almejada por um mercado em constante mudanças. Também as gerações Y e milênio, tipicamente sem longos compromissos, mudarão de empregos, mesmo de carreiras, várias vezes na vida. As Artes Liberais ensinam algo crucial nesse ambiente caótico: a capacidade de adaptação.
A formação liberal também serve aos estudos vocacionais
O engenheiro C. Judson King, em seu artigo Graduação em engenharia deve ser mais ampla, aponta para a necessidade de uma formação humanística e multidisciplinar em cursos altamente focados em aplicações práticas como são as engenharias. Tratar dilemas éticos, pensar criticamente, falar mais línguas, ter sensitividade transcultural, possuir consciência sócio econômica e ambiental, pensar ao longo prazo e com sustentabilidade são benefícios das artes liberais às profissões aplicadas. A sugestão é disponibilizar um componente de eletivas nos estilos das artes liberais nos currículos de cursos vocacionais.

Desafios à Educação Liberal
A educação interdisciplinar não é uma panaceia. Talvez o desafio maior para o estudante interdisciplinar é tomar responsabilidade por sua própria educação. Todavia, esse programa didático convive com alguns desafios que devem ser superados para o sucesso da educação liberal no Brasil.
Há reservas de mercado devido a um demasiado número de profissões regulamentadas. O credencialismo — possuir o diploma de uma faculdade de má qualidade que diga em todas as letras o título da profissão regulamentada — vale mais do que a capacidade profissional. Como é previsível a resistência corporativista, o remédio talvez seria instituir exames de ordem para as profissões regulamentadas e cobrar menos os títulos específicos.
Se por um lado o aluno montou seu próprio currículo, há ainda o desconhecimento do mercado e das instituições para aceitar um formando que precise gastar dois minutos para explicar o que estudou. Editais de concursos públicos, anúncios de empregos, candidaturas em pós-graduações ainda restringem vagas às “clássicas” formações mais conhecidas mesmo que não necessariamente precisem dessas formações. Recentemente, a Prefeitura de São Paulo rejeitou o diploma generalista de Licenciatura em Ciências da Natureza da USP Leste, embora o edital declarasse aberta vagas para “ciências, ciências biológicas, ou em história natural”. É uma amostra da futura resistência ao graduado interdisciplinar.
Entre 2000 e 2003, o filósofo e educador Renato Janine Ribeiro tentou implantar um Bacharelado em Humanidades na USP, mas a proposta esbarrou com o atavismo na academia. No Brasil só recentemente após o REUNI tornou-se possível cursos de bacharelado interdisciplinar em humanidades, ciências e tecnologia na UFBA, UFABC, UFJF, UFVJM, Unilab além de um Curso Sequencial Superior em Humanidades da Unicamp. As primeiras turmas dessas universidades estão aos poucos se formando e meu palpite é que o conhecimento da sociedade, administração, direito, raciocínio lógico e português encaminharão esses formandos para o serviço público.
Por motivar pela simples razão de se faz melhor o que se gosta, a educação liberal dos bacharelados interdisciplinares capacitarão não só para profissões, mas para a vida.
* Possui Diploma Superior (AA) e Bacharelado (BA) em Liberal Arts, os quais lhe abriram portas para trabalhar em diversas áreas em setores públicos e privados. Essas graduações serviram para a admissão a uma tradicional universidade europeia para seu mestrado em antropologia.