Os feudos prazeiros de Moçambique

Um pequeno almanaque dos estados de senhores da guerra que ora colaboravam ora desafiavam a coroa portuguesa no vale do Zambeze.

Os feudos prazeiros de Moçambique

Singularmente, a colonização portuguesa em Moçambique não seguiu a risca o roteiro das latifundia das Américas. Embora os prazos tenham nascido como concessões de terras da Coroa para agricultura, a distância de Lisboa transformou seus donos em algo muito diferente. Ali surgiram verdadeiros estados independentes, os prazos.

Entre os séculos XVI e XIX, o vale do Zambeze produziu uma das formações políticas mais peculiares do império português: os prazos da coroa, originalmente concessões de terra destinadas a estimular ocupação, agricultura e cobrança de tributos em nome do rei. Diferente da plantation americana ou do modelo de capitanias hereditárias no Brasil, essa estrutura africana evoluiu para algo mais próximo de um feudalismo improvisado, moldado pela distância da metrópole, pela força das chefias locais e pela economia de escravos e marfim. Com o tempo, os prazos deixaram de ser arrendamentos administrados por colonos para se tornarem microestados militarizados, governados por linhagens afro-portuguesas e, mais tarde, famílias de origem indo-portuguesa radicadas em Goa.

Essas entidades políticas emergiram entre a fragilidade da presença portuguesa e a capacidade militar dos prazeiros, que armavam e sustentavam seus próprios exércitos: os chikunda, guerreiros dependentes do senhor, treinados para cobrar tributos, defender fronteiras, caçar marfim e conduzir expedições escravistas. No auge, alguns prazos possuíam milhares de chikunda, operando como verdadeiras potências regionais capazes de desafiar — e por vezes derrotar — tropas enviadas da metrópole.

Origens e influências: feudalismo africano

Os prazos não foram povoados apenas por colonos vindos de Portugal. Desde o século XVII, muitas famílias que acabaram dominando o sistema tinham origem no Estado da Índia, sobretudo em Goa, o que explica a presença de elites luso-indianas no interior do Zambeze. Esses grupos — os chamados muzungos — afirmavam identidade portuguesa, mas eram, na prática, africanos em cultura, língua, parentesco e organização política. O resultado foi uma síntese singular: prazos regidos pela coroa, herança matrilinear segundo a norma local, e elites compostas por alianças afro-goanesas que exerciam poder como chefes regionais.

Comparações atlânticas: capitanias, morgadios, filibusteiros e feudos militarizados

O sistema de prazos lembra, superficialmente, as capitanias hereditárias do Brasil e ilhas atlânticas (como Madeira e Cabo Verde), pois envolvia concessões de terra, autonomia administrativa e transmissão hereditária. Contudo, divergia profundamente. No Brasil e nas ilhas, o poder senhorial operava dentro de estruturas mais fiscalizadas e dependentes de economia agrícola estável. No Zambeze, os prazos se militarizaram, gerando senhores de guerra que cobravam tributos, exerciam justiça, mantinham tropas e negociavam escravos e marfim com total independência.

Se as capitanias foram empreendimentos de colonização agrícola, os prazos tornaram-se estados senhoriais armados, próximos de reinos africanos vizinhos em suas instituições e práticas políticas.

O fenômeno dos prazos também se aproxima dos estados filibusteiros ingleses formados por aventureiros, mercadores e traficantes de marfim no interior da África Oriental e Central no século XIX. Como esses enclaves britânicos (ex.: fortes privados, protetorados de mercadores), os prazos eram entidades extraestatais, sustentadas por comércio ilegal, baseadas em alianças locais, armadas com tecnologia europeia, e apenas nominalmente submissas a um império distante.

Os prazos, portanto, formavam uma zona híbrida, onde colonos, afrodescendentes, chefes locais e soldados escravos competiam por autoridade.

O elemento militar: os chikunda

Nenhum prazo poderia existir sem os chikunda, cuja história atravessa todas as fases desse sistema. Inicialmente misturados a escravos domésticos e trabalhadores agrícolas, no século XVIII eles foram reclassificados como dependentes militares, juramentados ao senhor por rituais de lealdade vitalícia.

A partir do século XIX, esses guerreiros tornaram-se soldados profissionais, recrutados em áreas devastadas por fome ou guerra, vivendo em aldeias próprias e formando regimentos estáveis. Similar aos cavaleiros do feudalismo europeu, a classe samurai do xogunato japonês, cossacos ucranianos e russos, aos mamelucos e janísseros árabes e otomanos, essa elite militar acumulava funções bélicas, administrativas, econômicas e políticas. Seu papel incluía cobrança de tributos; policiamento dos prazos; caça ao marfim; expedições de escravização; defesa das aringas (fortificações); e guerras ofensivas contra rivais ou o governo português.

Em algumas décadas, os chikunda excederam em número tanto colonos quanto populações livres, chegando a formar 50 mil indivíduos no século XVIII. Com força dos chikunda, o auge dos estados prazeiros foi no século XIX. Só na província de Tete, durante o século XIX, 32 prazeiros possuíam 57 prazos.

A decadência: secas, epidemias e economia em colapso

A queda dos prazos começou muito antes das campanhas militares portuguesas do fim do século XIX. Entre 1794 e 1830, secas catastróficas, fome e epidemias de varíola devastaram a economia agrícola que sustentava prazeiros e chikunda. Sem excedentes alimentares, milhares de guerreiros desertaram, tornaram-se bandos independentes, migraram para outras regiões ou se integraram às populações camponesas. Esse colapso abriu espaço para novas lideranças — muitas originárias de Goa — que reconstruíram estados maiores e mais militarizados, financiados pelo comércio clandestino de escravos após 1830.

A destruição dos prazos decorreu da convergência de três dinâmicas distintas. As exigências da Conferência de Berlim (1884–1885) obrigaram Portugal a comprovar “ocupação efetiva”, o que impulsionou a substituição dos prazeiros autônomos por uma administração direta. Paralelamente, a expansão britânica — sobretudo por meio da British South Africa Company — gerou confrontos com figuras como Manuel António de Sousa e outros senhores do Zambeze, enfraquecendo seus domínios. Ao mesmo tempo, a formação das companhias majestáticas, entre elas a Companhia de Moçambique, instituiu novas estruturas policiais e fiscais que deslocaram o poder dos antigos chikunda e consolidaram a presença estatal por meio dos cipaios.

Entre 1890 e 1902, campanhas militares portuguesas e das companhias derrubaram os últimos estados prazeiros. Maganja da Costa caiu em 1898; a resistência de Massangano já havia sido neutralizada em 1888; as forças de Kanyemba foram destruídas pouco depois de 1900.

Assim se encerrou quase meio milênio de autonomia senhorial no vale do Zambeze. O que começou como um instrumento administrativo da Coroa converteu-se em uma paisagem política dominada por reinos híbridos, parte africanos, parte indo-portugueses. Foram sustentados por um sistema militar que, por muito tempo, rivalizou com o próprio colonialismo europeu.

Almanaque dos reinos prazeiros

Segue uma lista dos reinos prazeiros na história da África Austral.

Gorongosa. O reino pessoal de Manuel António de Sousa, vulgo Gouveia. Imigrante de Goa, Gouveia chegou à África em meados do século XIX e, através de guerras e casamentos estratégicos, tornou-se o senhor absoluto das montanhas da Gorongosa. Era uma figura de poder tal que era temido como feiticeiro pelas populações locais e servia de “fazedor de reis”, ora ajudando Portugal a combater tribos rebeldes, ora agindo por conta própria. Seu império ruiu quando ele foi capturado pela Companhia Britânica da África do Sul numa disputa de fronteiras e posteriormente morto em combate em 1892. Capital: Aringa de Massara/Paiva. Regime político: chefatura. Reconhecimento: aliado ocasional de Portugal. Moeda: ?

Macanga. Localizado ao norte de Tete, este estado foi forjado pela família Pereira. Seus líderes, Pedro Caetano Pereira (o Choutama) e seu filho Chissaka, integraram-se tão profundamente à sociedade local que eram vistos não como colonos, mas como chefes nativos legítimos. Macanga era uma potência militar que frequentemente realizava raides contra territórios portugueses e bloqueava rotas comerciais. Após décadas de hostilidades intermitentes, o estado foi desmantelado durante as campanhas de pacificação no final do século XIX. Capital: Aringas de Macanga. Regime político: chefatura. Reconhecimento: nenhum. Moeda: panos e marfim.

Maganja da Costa. Diferente dos feudos tradicionais, Maganja organizou-se em meados do século XIX quase como uma república militar sob o comando da família Alves da Silva. Notório pela eficiência implacável de seu exército e pelo tráfico de escravos, o estado era protegido por maciças fortificações de madeira (aringas) que pareciam inexpugnáveis. Foi um dos últimos grandes focos de resistência a cair, exigindo uma expedição massiva das forças coloniais portuguesas em 1898 para finalmente subjugar a região. Capital: Maganja. Regime político: chefatura militar familiar. Reconhecimento: nenhum. Moeda: ?

Massangano. O arqui-inimigo da administração colonial. Situado na estratégica confluência dos rios Zambeze e Luenha, foi o reduto da família Cruz. Joaquim da Cruz (o Nhaúde) e seu filho António Vicente (o Bonga) criaram uma dinastia que humilhou Portugal por gerações. As chamadas “Guerras do Bonga” foram uma sucessão de derrotas para as forças da metrópole, que batiam em retirada frente às táticas de guerrilha dos Cruz. O reino só caiu em 1888, após um cerco implacável e disputas internas de sucessão. Capital: Massangano. Regime político: . Reconhecimento: nenhum. Moeda: ?

Massingire. Um estado volátil no vale do rio Shire, fundado pela família Vaz dos Anjos. O reino vivia imprensado entre a esfera de influência portuguesa e os interesses missionários britânicos no que hoje é o Malawi. A tensão explodiu na “Revolta de Massingire” em 1884, quando a família tentou afirmar total independência. O levante foi esmagado pelos portugueses, desesperados para garantir a posse do território contra as pretensões britânicas durante a Partilha da África. Capital: Massingire. Regime político: chefatura. Reconhecimento: nenhum. Moeda: ?

Zoutpansberg. Embora tecnicamente no Transvaal (atual África do Sul), funcionava como um reino prazeiro clássico. O português João Albasini, conhecido como “Juwawa”, estabeleceu-se ali como um verdadeiro chefe branco. Comandava um exército privado de guerreiros Tsonga e controlava com mão de ferro as rotas de marfim entre o interior e Lourenço Marques. Diferente dos outros, seu reino não acabou em guerra contra a coroa, mas dissolveu-se gradualmente com a morte de Albasini em 1888 e a consolidação do poder dos bôeres na região. Capital: Goedewensch (Schomansdal). Regime político: chefatura pessoal. Reconhecimento: tolerado pela República Sul-Africana (Transvaal). Moeda: ?

Linha do Tempo

Meados do séc. XIX: Consolidação da “República Militar” de Maganja da Costa

1850 – 1888: Auge e morte de João Albasini em Zoutpansberg

1853 – 1888: As Guerras do Bonga e resistência de Massangano

1884: Revolta de Massingire

1892: Morte de Gouveia e fim do poderio de Gorongosa

1898: Queda de Maganja da Costa e fim efetivo da era dos Prazeiros

SAIBA MAIS

AZEVEDO, Mario; NNADOZIE, Emmanuel; MBUIA, Tomé. Historical Dictionary of Mozambique. 2. ed. Lanham: Scarecrow Press, 2003.

CAPELA, José. How the aringas became maroon communities in Mozambique. Tempo, v. 10, p. 72-97, 2006. https://doi.org/10.1590/S1413-77042006000100005

ISAACMAN, A. Chikunda Transfrontiersmen and Transnational Migrations in Pre-Colonial South Central Africa, ca 1850–1900. Zambezia, v. 27, n. 2, p. 109-138, 2000.

ISAACMAN, A.; MULWAFU, M. From Slaves to Freedmen: The Impact of the Chikunda on Malawian Society, 1850-1920. The Society of Malawi Journal,, v. 52, n. 2, p. 1-32, 1999.

NEWITT, Malyn D. D. The Portuguese on the Zambezi: An Historical Interpretation of the Prazo System. The Journal of African History, v. 10, n. 1, p. 67-85, 1969.

NEWITT, Malyn D. D. Portuguese Settlement on the Zambesi: Exploration, Land Tenure and Colonial Rule in East Africa. New York: Africana, 1973.

VEJA TAMBÉM

Carta do Chefe Machemba ao Major von Wissmann

Países que se separaram do Brasil

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Um site WordPress.com.

Acima ↑