Por Clarissa Paranhos de Araújo Ribeiro*
Para de ondular, agora, cobra coral…
Este pequeno texto se debruça sobre o trabalho de um historiador contemporâneo, explorador dos diferentes campos das ciências humanas, o pensador francês Michel de Certeau. Porém, o traço mais importante de sua biografia para o pequeno texto que, pela hospitalidade do Ensaios e notas, agora ofereço, é o seguinte: Michel de Certeau era um jesuíta.

Prisma de tantas cores
Ressalto esse elemento central de sua história de vida por pensar que o problema a me chamar a atenção na obra do autor é em muito instigado por sua escolha de fé, sua escolha de integrar uma ordem religiosa num mundo em que, como observa o próprio autor, a religiosidade deixou de ser o tecido que conforma e orienta a vida. Michel de Certeau era um homem que acreditava em Deus, e essa experiência fundante lhe suscita a questão que me importa aqui: de que forma falar com os outros, já que o Outro se tornou prisma a refletir múltiplas cores?
A pergunta se desdobra, por exemplo, em suas inquirições sobre a história: Quem é o sujeito do discurso da história, que “eu” se põe a falar ali? De que “outro” ele fala? Essas questões pipocam em cada texto de nosso autor, instado a reverberar os efeitos de sua imensa sensibilidade à alteridade.
Certeau vive de maneira singular sua posição de jesuíta. Historicamente, são sobretudo os jesuítas, com efeito, que se encarregaram da relação entre a Europa moderna e os povos originários, oferecendo a seus contemporâneos e às gerações futuras um conjunto de formulações basilares sobre uma sociedade tão diferente da europeia. Como um herdeiro dessa tradição, Certeau pesquisa longamente os relatos de viagem e toda a literatura moderna acerca dos ditos “selvagens”, mas a pergunta que o impulsiona é distinta daquela que – é verdade que sem sutileza – pode-se emprestar a seus antecessores. Enquanto estes procuravam harmonizar os contrários, refundar a cosmologia cristã ao abarcar em sua lógica a diferença do outro, Certeau, pensador crítico da modernidade, quer saber em que medida essa alteridade, em sua submissão ao domínio europeu, acaba por modificar decisivamente a consciência de si europeia.
Dito de maneira mais precisa, a hipótese de Certeau é a seguinte: no encontro com a alteridade, os europeus buscam domá-la pelo saber, quer dizer, pela elaboração de um discurso acerca dela que a transforma em objeto oferecido ao conhecimento e ao controle da escrita. Ora, nos diz Certeau, oposta a essa empreitada da escrita europeia, a particularidade dos ditos “selvagens” se preserva na oralidade, oralidade esta que vai incidir decisivamente sobre as formas de escrever. É nessa relação entre domínio pela escrita e resistência de uma oralidade subreptícia que Certeau se demora. Os dois textos pinçados por mim na obra de Certeau se põem no alvorecer da etnologia – campo do saber cuja formação, no começo da modernidade, é atravessada pelo efeito discursivo da alteridade “selvagem”.
Partamos então de um belíssimo ensaio chamado “Montaigne: Dos Canibais”, publicado hoje no livro O lugar do outro – História religiosa e mística (2021). A leitura oferecida por Certeau do maravilhoso ensaio de Michel de Montaigne, Dos canibais, publicado em torno de 1580, se concentra em destacar um movimento sutil do texto. Certeau pontua que Montaigne, em sua desconstrução do senso comum que circulava então acerca dos ditos “selvagens”, teria salientado a maneira como a voz, a fala, conforma a vida indígena. Maneira particular, diferente da incidência da oralidade na sociedade medieval, então em seu ocaso. Assim, no mundo medieval a fala é um dito – isto é, a autoridade da palavra enunciada se relacionada a uma afirmação de verdade, fundamentada na autoridade sagrada de quem fala. Diferentemente, no mundo “selvagem” a fala seria um dizer. Assim, o sentido do rito da antropofagia reside em o inimigo capturado sustentar por reiterados atos enunciativos sua posição honrosa de homem que não teme a morte, e isto apesar da morte que se aproxima por seu próprio gesto (pois só o homem valente vale o rito). Como formula Certeau:
Essa fábula canibal já não pertence aos discursos, não dependendo dos enunciados (verdadeiros ou falsos), mas é um ato enunciativo. Ele nada transmite e não se transmite: tal ato é instituído ou, então, ele não existe. Desse modo, ele não seria manipulado como uma lenda ou uma narrativa, nem destacável de um lugar particular (…), de um desafio interlocutório (em face do inimigo) e de uma perda que é o preço a se pagar por ela (um desapossamento). A epifania do corpo selvagem [garante] (…) a passagem para a enunciação (ato enraizado na coragem de dizer e, portanto, verídico). (CERTEAU, 2021, p. 319)
A passagem para a enunciação, tornada possível pelo contato com a oralidade indígena, será atravessada pelo ensaio de Montaigne. Ele cantarola: “Couleuvre, arrête-toi; arrête-toi, couleuvre”[1], ressoando no francês a canção tupi. Em vez de se pôr como uma autoridade do saber sobre os “selvagens”, o “eu” que fala é um “eu” particular, que ouve aqueles cuja fala sobre a cultura tupi não se distingue do ato de constituí-la: os indígenas que foram visitar a corte francesa, o francês simples que viveu entre os tupi por mais de uma década. Ambos os testemunhos, reivindicados por Montaigne como fonte para a sua própria fala, carregam em si o peso da experiência daquela cultura, ou seja, o peso de uma cultura em que a diferença entre a linguagem e as coisas não se dá pela intenção de revelar a verdade das coisas por sob o manto da linguagem – como na cultura ocidental –, senão pela intenção de revestir as coisas com os efeitos causados pela linguagem.
Para que a linguagem, entendida como “ato de enunciar”, possa se transmitir dos “selvagens” para o ensaio de Montaigne, o autor precisa de uma escuta. Próprio ao ato enunciativo, ao dizer, é se realizar em uma relação dialógica em que, claro, mais de um se aliam para dar significado ao mundo. Montaigne contava com a escuta de seu amigo La Boétie, cuja morte o devasta. Mas essa habilidade de escutar, que dizer, de ouvir uma enunciação enquanto enunciação e não enunciado, verdade estanque, é oferecida pelo texto ao leitor. Não apenas pelo texto ensaístico de Montaigne, senão, observa Certeau em outro célebre ensaio sobre a etnologia, em toda a forma discursiva moderna que se caracterizar pela busca de estabelecer um saber sobre esse “outro” que desponta então.
Em “Etno-grafia. A oralidade, ou o espaço do outro: Léry”, Certeau se debruça sobre a História de uma viagem ao Brasil, do francês Jean de Léry, também publicada no fim do século XVI. O viajante Léry, comovido pelo transtorno existencial da Europa reformada, busca oferecer ao leitor europeu uma imagem estabilizada dos tupi, como um espelho invertido. Ao mirá-lo, contudo, Certeau se lembra de que todo espelho é captura. Nosso autor destaca do relato os momentos em que Léry se deixa levar pela oralidade tupi, como nas cerimônias rituais cantadas que dobram (submetem e multiplicam) a ânsia significante de Léry. Momentos de pura presença em que a enunciação toma Léry, e o leitor… Mas não da forma plena com que pôde ser vivida pelos tupi:
Então os “ruídos” [bruits] se impõem por sobre a “mensagem”, e o cantado por sobre o falado. […] Assim a vocação[2] do xamã indígena é com frequência a audição de um pássaro da floresta, impulsão e aptidão para cantar. Quase de imediato afetada [por Léry] por um sentido, “religioso” ou não, em si mesma a voz cria a falha de um “esquecimento” e de um êxtase. À diferença do que acontece no xamanismo, ela não constitui uma função social; pelo contrário, ela atravessa a linguagem, ela faz do in-sensato o furo por onde se engendra um poema irresistível. (CERTEAU, 1975, p. 281)[3]
Essa enunciação encontra uma escuta que não é capaz de, junto a ela, estabelecer um sentido comum. É a despeito do sentido que o diálogo permanece enquanto estrutura da escrita sobre o outro: nos pontos mais decisivos, ele se estabelece enquanto revelador de uma presença perdida que, sem ter sentido definido, se abre à imaginação do leitor. Inaugura-se assim o trabalho da imaginação sobre o incompreendido, a metaforização do dizer indígena, presença perdida que pode voltar (apenas) enquanto eixo plural de significados a envolver o presente da leitura. Instauração pelo diálogo do autor que escreve, da fonte como autor que fala e do leitor que, ao ler, deriva. Heterologia, ou o sibilar prismático de uma cobra coral.
SAIBA MAIS
CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975
CERTEAU, Michel de. O lugar do outro. História religiosa e mística, tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, Rio de Janeiro: Vozes, 2021
NOTAS
[1] MONTAIGNE, Michel de, Oeuvres complètes, Paris: Seuil, 1967, p. 103. Cobra, pare; pare, cobra. Caetano Veloso baseou-se neste trecho do ensaio Os canibais, que ainda verte o restante da canção,para compor a sua “Cobra coral”.
[2] Por “vocação” pode-se entender aqui tanto a aptidão do xamã como o próprio ato vocálico de chamar, investindo os sentidos originais da palavra cuja raiz é o vocábulo vocatio, -onis « ação de chamar », « convite » – de onde deriva ainda o sentido significativo para Léry (e Certeau): « chamado feito por Deus ». (Conferir o dicionário Trésor de la langue française, http://atilf.atilf.fr/tlf.htm )
[3] Tradução sob responsabilidade da autora.
SOBRE AUTORA
* Esta postagem é um ensaio de Clarissa Paranhos de Araújo Ribeiro.
Historiadora e doutoranda pela PUC-Rio, nos brindou com esse brilhante ensaio sobre de Certeau.
Para saber mais sobre a autora, consulte:
issapar1592@gmail.com
https://orcid.org/0009-0000-8540-9339
http://lattes.cnpq.br/2823161362181589
