Marvin Harris e o Materialismo Cultural

O materialismo cultural, desenvolvido pelo antropólogo Marvin Harris (1927–2001), é um paradigma teórico e método de trabalho que oferece uma visão única para entender a cultura humana. Diferente de outras abordagens que focam em ideias ou símbolos, o materialismo cultural propõe que as condições materiais – como o ambiente, a tecnologia e os sistemas econômicos – são os principais fatores que moldam as práticas culturais, as crenças e as estruturas sociais. Esta abordagem coloca a base material como determinante central da cultura, argumentando que aspectos mais simbólicos e ideológicos emergem em resposta a esses fatores tangíveis.

Princípios do Materialismo Cultural

  1. Determinismo Infraestrutural propõe que a “infraestrutura” – a base econômica e material de uma sociedade – exerce uma influência decisiva nas outras esferas da cultura. A infraestrutura molda a “estrutura” (organização social e relações) e a “superestrutura” (valores, crenças e ideias). Esta hierarquia sugere que as práticas e organizações humanas derivam das necessidades e dos recursos materiais básicos.
  2. Perspectiva Ética (Etic), ou seja, uma análise objetiva e externa da cultura, em vez de depender exclusivamente da perspectiva interna (ou “êmica”). Ao observar de forma objetiva, busca-se uma análise científica e imparcial, com foco em evidências empíricas que revelam padrões culturais mais amplos e universais.
  3. Abordagem Científica fundamentado na coleta de evidências, na análise lógica e no teste de hipóteses para explicar as variações culturais. Esse método ajuda a identificar os fatores materiais que promovem mudanças culturais e permite analisar a cultura de forma objetiva.
  4. Foco nos Fatores Materiais são mais relevantes que fatores ideacionais. Embora não negue a importância de ideias e valores, adeptos do materialismo cultural os considera secundários às condições materiais no processo de mudança cultural.

Conceitos-Chave do Materialismo Cultural

1. Infraestrutura

A infraestrutura é a base essencial para a sobrevivência e reprodução humana. Inclui as condições materiais necessárias para satisfazer as necessidades básicas de uma sociedade:

  • Tecnologia: Ferramentas e conhecimentos usados para a produção de bens e serviços, que podem variar desde instrumentos agrícolas até maquinário avançado.
  • Ambiente: Recursos naturais, clima e características geográficas. Esses fatores influenciam os tipos de alimentos disponíveis e as condições de abrigo.
  • População: O tamanho, densidade e taxa de crescimento da população afetam diretamente a disponibilidade de recursos e a organização social.

Segundo Harris, a infraestrutura exerce uma influência poderosa sobre outras esferas culturais, pois impacta diretamente a capacidade de uma sociedade de suprir suas necessidades básicas. Mudanças nessa base material, como inovações tecnológicas ou alterações ambientais, podem desencadear transformações nas estruturas sociais e nos sistemas de crenças.

2. Estrutura

A estrutura refere-se aos padrões organizados da vida social e das relações dentro de uma sociedade. Ela inclui:

  • Economia Doméstica: A organização das unidades familiares, de parentesco e das unidades domésticas, incluindo padrões de casamento e criação de filhos.
  • Economia Política: Sistemas de poder, autoridade e controle social, que englobam instituições políticas, legais e econômicas.

O materialismo cultural sugere que a estrutura é moldada pela infraestrutura. Por exemplo, a forma como uma sociedade organiza suas famílias ou seus sistemas políticos pode estar intimamente relacionada às suas estratégias de subsistência ou ao acesso a recursos.

3. Superestrutura

A superestrutura representa o campo das ideias, valores e símbolos que fornecem significado a uma sociedade. Engloba:

  • Religião: Crenças e práticas relacionadas ao sobrenatural.
  • Ideologia: Sistemas de ideias que explicam e justificam as organizações sociais.
  • Arte: Expressões criativas dos valores e crenças culturais.

Embora o materialismo cultural reconheça a importância da superestrutura, considera-a como subordinada à infraestrutura e à estrutura. Isso significa que mudanças nas ideias e valores geralmente refletem mudanças nas condições materiais de vida.

A relação entre infraestrutura, estrutura e superestrutura

O materialismo cultural propõe uma relação hierárquica entre esses três conceitos. Nessa relação, a infraestrutura forma a base, moldando a estrutura, que, por sua vez, influencia a superestrutura. Este modelo permite uma compreensão de como as condições materiais desempenham um papel crucial nas variações culturais. A partir dessa perspectiva, as mudanças culturais podem ser vistas como respostas adaptativas às condições materiais e ambientais de cada sociedade.

Benefícios materiais para práticas culturais

A teoria do materialismo cultural propõe que muitas práticas culturais, especialmente aquelas que parecem irracionais ou puramente simbólicas, podem ser explicadas através de uma análise dos benefícios materiais que proporcionam para a sociedade. Para Harris, as práticas culturais têm raízes em fatores econômicos e ecológicos que ajudam a garantir a sobrevivência e o bem-estar de uma população. Abaixo, discutiremos como essa perspectiva pode ser aplicada a alguns fenômenos alimentares em diferentes culturas.

1. A Vaca Sagrada na Índia

Na Índia, as vacas são consideradas sagradas e seu consumo como alimento é amplamente evitado, apesar da realidade de pobreza e fome enfrentada por muitos no país. Para Harris, essa prática aparentemente irracional tem uma explicação materialista. As vacas possuem um papel central na vida rural indiana, e protegê-las oferece vários benefícios práticos.

Primeiramente, os bois, que são machos da espécie, são essenciais para a agricultura, pois são usados para arar a terra. Além disso, as vacas fornecem leite, um alimento crucial para muitas famílias. Outro aspecto importante é o uso do esterco bovino como fertilizante natural, fonte de combustível e até material de construção. Portanto, Harris afirma que o valor das vacas para a sociedade indiana vai além de sua carne: elas são um recurso multifuncional e vital para as comunidades, principalmente rurais. Preservá-las garante a continuidade desses benefícios materiais que são fundamentais para a subsistência de muitos.

2. Canibalismo Ritualístico entre os Astecas

Outro exemplo controverso analisado por Harris é o canibalismo ritualístico praticado pelos astecas, uma civilização antiga do México. Embora o canibalismo possa ser interpretado sob uma perspectiva simbólica ou religiosa, Harris sugere uma explicação baseada em necessidades materiais. Os astecas viviam em uma região onde a dieta seria supostamente deficiente em proteína devido à escassez de fontes animais. Nesse contexto, o canibalismo poderia ter funcionado como um suplemento proteico necessário.

Além disso, Harris propõe que o canibalismo poderia ter desempenhado um papel no controle populacional. Em uma região densamente povoada e com recursos limitados, práticas que ajudavam a regular a população poderiam ser benéficas para o equilíbrio ecológico e a sustentabilidade dos recursos. Assim, o canibalismo, para Harris, pode ser visto como uma resposta material a questões de sobrevivência e manutenção da estabilidade populacional em um ambiente desafiador.

3. O Potlatch entre os Povos Indígenas da Costa Noroeste

O potlatch é uma cerimônia complexa praticada por grupos indígenas da Costa Noroeste da América do Norte, caracterizada pela distribuição e até destruição de riquezas. Superficialmente, o potlatch pode parecer uma prática de desperdício, mas Harris defende que ele possui funções materiais importantes para essas comunidades.

Através do potlatch, há uma redistribuição de recursos, permitindo que o excedente de algumas famílias ou grupos seja compartilhado com aqueles que têm menos. Isso cria uma forma de seguro social, garantindo que todos tenham acesso a bens essenciais em períodos de escassez. Além disso, o potlatch funciona como um mecanismo de gestão de riscos, pois as comunidades que experimentam um bom ano de colheita ou pesca podem compartilhar com aqueles que não tiveram a mesma sorte. Essa prática fortalece os laços comunitários e promove a sobrevivência em um ambiente sujeito a variações climáticas e escassez temporária de recursos.

4. Tabus Alimentares

Tabus alimentares são comuns em várias culturas, proibindo o consumo de certos animais ou plantas. Muitos desses tabus têm explicações ecológicas e econômicas que podem ser compreendidas através do materialismo cultural.

Um exemplo notável é o tabu contra o consumo de carne de porco no Oriente Médio. Harris sugere que, nesse ambiente árido, os porcos não são bem adaptados e competem com os humanos por recursos escassos, como água e grãos. Os porcos necessitam de muita água e alimento para sobreviver e crescer, e criar esses animais em regiões desérticas seria economicamente inviável. Portanto, o tabu contra o consumo de carne de porco pode ter surgido de uma necessidade prática de evitar o cultivo de um animal que consome recursos preciosos em uma região onde eles são escassos.

Outro exemplo é a já mencionada vaca sagrada na Índia, onde o tabu contra o consumo de carne bovina reflete a importância das vacas para a subsistência material das comunidades.

Materialismo Cultural: desenvolvimento e legado

Marvin Harris foi o principal arquiteto do materialismo cultural. Nascido no Brooklyn, Nova Iorque, cursou antropologia na Universidade de Columbia, onde obteve seu bacharelado em 1948 e seu doutorado em 1953. Sua pesquisa de campo se estendeu por várias regiões do mundo, incluindo o Brasil, Moçambique, Índia e Equador, além de comunidades navajos nos Estados Unidos. Combinava pesquisa com articulação política. Seu trabalho em Moçambique, por exemplo, contribuiu para a abolição do sistema de trabalho forçado no país.

No Brasil, fez pesquisa na Chapada Diamantina, em Rio de Contas, como parte do projeto doutoral. O estudo foi publicado em 1956 como Town & Country in Brazil: a socio-anthroplogical study of a small Brazilian town. No entanto, a obra não teve repercussão. Durante meu mestrado, precisei acessar uma cópia para meus estudos camponeses: sessenta e poucos anos depois o livro ainda tinha páginas sem cortes.

Harris lecionou na Universidade de Columbia e, posteriormente, na Universidade da Flórida até sua aposentadoria. Sua produção acadêmica foi extensa, com obras como The Rise of Anthropological Theory (1968), Cows, Pigs, Wars, and Witches (1974) e Cultural Materialism (1979), nas quais ele explorou e defendeu uma abordagem materialista para a cultura. Como dito, Harris enfatizou a perspectiva científica, ou etic, e desafiou o que via como idealismo excessivo na antropologia, insistindo que fatores materiais—tecnologia, recursos e meio ambiente—têm um papel central na formação das culturas.

O The Rise of Anthropological Theory (1968) seria seu principal livro. Apelidado pela sigla RAT, utilizou-o em vários seminários para demonstrar como as teorias sociais anteriores não conseguiam sintetizar generalizações do comportamento humano que somassem fatores ambientais, materiais, econômicos com elementos simbólicos e ideacionais.

O período pós-Segunda Guerra Mundial coincidiu boom econômico e as lutas pela descolonização aumentaram a consciência das desigualdades globais, levando cientistas sociais a reconsiderarem suas teorias e metodologias. Na antropologia, esse período viu um embate entre o estruturalismo, que analisava estruturas mentais universais como base para os padrões culturais, e novas teorias que enfatizavam o contexto material e histórico. Para piorar, o clima de maccartismo era uma barreira para utilizar teorias de raízes marxistas na academia norteamericana.

O estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, foi criticado pelos materialistas culturais, pois ignorava o impacto dos fatores ambientais e econômicos. Outra influência importante foi o neo-evolucionismo, que reavivou o interesse na evolução cultural por meio do avanço tecnológico e da gestão de recursos. A ênfase de Leslie White na energia como um fator impulsionador nas sociedades humanas ressoou em Harris, que construiu sobre essa ideia ao destacar como as necessidades de subsistência e sobrevivência moldam as práticas culturais.

O clima político da Guerra Fria também teve um papel na formação do materialismo cultural. Em uma era carregada de conflitos ideológicos, a teoria de Harris se diferenciou tanto das narrativas capitalistas quanto das marxistas, focando não na luta de classes ou na ação revolucionária, mas na análise empírica das práticas culturais. A ênfase da teoria na causalidade e nas evidências concretas fornecia uma alternativa e um contra-argumento às teorias marxistas.

Como mencionado, Harris propôs um modelo que dividia a sociedade em infraestrutura, estrutura e superestrutura, com a infraestrutura—base material e econômica da sociedade—como o fator principal que impulsiona a cultura. Essa infraestrutura compreende elementos como produção e reprodução, e forma a base para a estrutura (organização social) e a superestrutura (ideologia, religião e arte).

Harris empregou amplamente as perspectivas emic e etic. As perspectivas emic, ou visões internas, refletem como os indivíduos dentro de uma cultura percebem seu mundo. As perspectivas etic, por outro lado, adotam uma postura externa e objetiva que, segundo Harris, oferece uma compreensão mais confiável dos mecanismos causais que moldam a cultura. Afirmava que o rigor científico da análise etic poderia trazer maior objetividade e profundidade à pesquisa antropológica.

Depois de Harris, outros antropólogos como Barbara Price, Allen Johnson e Orna Johnson desenvolveram o materialismo cultural, incorporando a teoria dos sistemas, entendendo o modelo de Harris como um sistema no qual infraestrutura, estrutura e superestrutura são interdependentes, frequentemente influenciando-se por meio de ciclos de feedback.

Críticas ao Materialismo Cultural

O materialismo cultural recebeu críticas significativas. A teoria simplifica fenômenos culturais complexos ao reduzi-los principalmente a fatores materiais, negligenciando o papel das ideias, valores e da agência humana. O foco do materialismo cultural na infraestrutura e no determinismo ignora como indivíduos e grupos exercem agência e fazem escolhas culturais que não são movidas apenas por necessidades econômicas ou ambientais.

Outra crítica surgiu com o surgimento do pós-modernismo na antropologia, que questionava a possibilidade de conhecimento objetivo e enfatizava a importância da experiência subjetiva. A abordagem científica e etic do materialismo cultural desconsiderava a subjetividade cultural das sociedades humanas, sugerindo que as reivindicações científicas da teoria sobre uma verdade universal ignoravam a diversidade e a complexidade da construção de significados humanos.

Além disso, embora o materialismo cultural se diferenciasse do marxismo, a teoria de Harris carecia da análise sociopolítica. Ignorava às relações de classe e dinâmicas de poder, bem como uma sociologia de conflito. Assim, o materialismo cultural perdia a complexidade das mudanças e conflitos sociais em favor de um modelo causal excessivamente linear.

Legado e influência

Apesar dessas críticas, o materialismo cultural tem seu lugar na galeria da história do pensamento antropológico. O foco de Harris nas condições materiais como centrais para a análise cultural influenciou gerações de antropólogos e cientistas sociais, reforçando o valor de abordagens empiricamente fundamentadas para o estudo da cultura. Foi aproveitado desde a arqueologia processual até a abordagem material e dos artefatos nos estudos literários.

Em resposta às críticas, o materialismo cultural evoluiu para formas mais flexíveis, com muitos antropólogos contemporâneos adaptando as ideias de Harris para incorporar outras perspectivas. Por exemplo, embora ainda enfatizem fatores materiais, essas versões modificadas permitem a interação da agência, da ideologia e da contingência histórica na formação das práticas culturais.

O legado do materialismo cultural contribuiu uma compreensão empiricamente fundamentada da cultura. Embora possa não ocupar mais uma posição dominante na teoria antropológica, suas ideias centrais—como a influência da subsistência e da produção nas normas culturais—ainda gera pesquisas e debates.

* * *

Em sumário, o materialismo cultural vê a cultura de modo tangível. Isso porque os aspectos mais simbólicos e ideológicos de uma sociedade não surgem no vazio, mas são moldados e limitados pelas condições materiais. Assim, o materialismo cultural considera o quanto o ambiente, a tecnologia e os recursos econômicos influenciam as práticas e crenças humanas.

SAIBA MAIS

Livros de Marvin Harris:

  • Harris, Marvin. Cannibals and Kings: The Origins of Cultures. Vintage, 1977.
  • Harris, Marvin. Cows, Pigs, Wars, and Witches: The Riddles of Culture. Vintage, 1974.
  • Harris, Marvin. Cultural Materialism: The Struggle for a Science of Culture. Random House, 1979.
  • Harris, Marvin. Cultural Materialism: The Struggle for a Science of Culture. 2nd ed., AltaMira Press, 1982 [1979].
  • Harris, Marvin. “Cultural Materialism Is Alive and Well and Won’t Go Away Until Something Better Comes Along.” Assessing Cultural Anthropology, edited by Robert Borofsky, McGraw-Hill, 1994, pp. 62–75.
  • Harris, Marvin. Our Kind: Who We Are, Where We Came From, and Where We Are Going. HarperCollins, 1989.
  • Harris, Marvin. Postmodern Culture Theory. 2nd ed., Routledge, 2000 [1999].
  • Harris, Marvin. The Nature of Cultural Things. Random House, 1964.
  • Harris, Marvin. The Rise of Anthropological Theory: A History of Theories of Culture. Crowell, 1968.

Obras relacionadas

  • Harris, Marvin. “Anthropology and Postmodernism.” Science, Materialism, and the Study of Culture, edited by Martin M. Murphy and Maxine L. Margolis, University Press of Florida, 1995, pp. 62–77.
  • Johnson, Allen, and Orna Johnson. “Introduction to the Updated Edition.” Cultural Materialism: The Struggle for a Science of Culture, Random House, 2001.
  • Macagno, Lorenzo. “O nascimento do materialismo cultural? Um debate entre Marvin Harris e António Rita-Ferreira.” Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology 13 (2016): 01-21.
  • Price, Barbara J. “Cultural Materialism: A Theoretical Review.” American Antiquity, vol. 47, 1982, pp. 709–741. JSTOR, doi:10.2307/280279.
  • Simoons, F. J. “Food Preferences and Aversions.” Proceedings of the International Symposium of the Wenner-Gren Foundation, Florida, October 1986.

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