Já notou que geralmente quando se fala em ciências de dados há um pressuposto de que seja a utilização de métodos quantitativos? Depois de gastar horas pesquisando em sumários de livros e descrições de cursos sobre “data science” constatei que no campo de ciência de dados, uma das disciplinas mais valorizadas e discutidas, há uma forte tendência em equacionar essa ciência com métodos puramente quantitativos. Essa visão limitada perde o raciocínio crítico, humanizado e complexo oriundo dos métodos qualitativos.
O conjunto de disciplinas designado ciências de dados possuem raízes em estatísticas, matemática e ciência da computação. Essas disciplinas lidam predominantemente com dados numéricos e promoveram o uso de ferramentas e metodologias que privilegiam a análise quantitativa. No entanto, no mundo aplicado, desde de atendimento ao consumidor até planejamento de políticas públicas de moradia, pessoas expressam demandas embutidas em valores, ideologias, práticas e relacionamentos, sem contar os significados atribuído a fatos irredutíveis a dados quantitativos. Portanto, integrar dados qualitativos em ciências de dados permite uma compreensão mais profunda dos fenômenos analisados.
Dá para entender as razões para o viés quantitativo
A predominância dos métodos quantitativos na ciência de dados resulta de diversos fatores. Como mencionado, a própria gênese da ciência de dados está profundamente enraizada na estatística e ciência da computação. Sem contar que a ferramente faz o operário. Muitas das ferramentas e bibliotecas para a análise quantitativa foram utilizadas pelos cientistas de dados, o que reforça a preferência por este tipo de dados. Além disso, os resultados quantitativos, muitas vezes, oferecem desfechos mensuráveis e tangíveis, altamente valorizados em contextos empresariais e de pesquisa, onde se busca objetividade e clareza. E parte da culpa resulta de muitos cientistas sociais e estudiosos de humanidades desdenharem iniciativas como a eHRAF World Cultures – Human Relations Area Files, uma base de dados etnográfica mantida pela Yale, por uma pressuposta ameaça de determinismo, positivismo ou reducionismo.
A importância dos dados qualitativos
Apesar do valor inegável dos dados quantitativos, são insuficientes para capturar toda a complexidade dos comportamentos e experiências humanas. Dados qualitativos, que incluem informações sobre motivações, emoções e contextos culturais, oferecem uma compreensão mais profunda das realidades estudadas. Não são subordinados, mas complementam as descobertas quantitativas, fornecendo nuances que ajudam a explicar o “porquê” por trás dos números.
Os dados qualitativos são essenciais para identificar padrões inesperados ou tendências que podem passar despercebidos em análises quantitativas. Além disso, são fundamentais para entender experiências de usuários e desenhar produtos que realmente atendam às necessidades humanas. Essa abordagem, muitas vezes referida como “dados densos” ou “thick data”, oferece uma forma poderosa de contrabalançar o viés quantitativo presente na ciência de dados.
O poder dos dados densos
O conceito de dados densos, como inicialmente proposto pela antropóloga Tricia Wang, integra informações qualitativas ao processo analítico. Inspirado no conceito de “descrição densa” de Clifford Geertz, dados densos demonstram a relevância do contexto, do significado e da interpretação na análise de dados. Enquanto o big data se caracteriza por grandes volumes de dados quantitativos, processados por técnicas de machine learning, os dados densos se concentram em amostras menores, mas com uma profundidade significativa de informações. Ao combinar essas duas abordagens, obtém-se uma visão mais holística e precisa de qualquer fenômeno.
O uso de netnografia, UX e UXI mitigou um pouco o viés quantitativo, mas ainda muitos decisores consideram tais abordagens só como um agregador de reclamações de usuários ou uma técnica entretenedora de apresentação de resultados de pesquisa.
A volta da linguagem natural via chats da IA generativa levantou a necessidade de aprimorar o conhecimento da comunicação e de fenômenos culturais. Como em qualquer pesquisa, ética é fundamental, mas na análise qualitativa há um onipresente encontro e, consequentemente, reflexão. Isso permite voltar a tratar seres humanos como fins, não meios regidos por algorítmos.
Como funcionam na prática
O etnógrafo Stephen Paff list alguns casos de integração bem-sucedida de métodos mistos. O No Show Model utilizou a etnografia para projetar um modelo de machine learning que prevê ausências de pacientes, identificando fatores críticos por meio de pesquisa qualitativa. O Cybersensitivity Study usou machine learning para ampliar as percepções etnográficas sobre o consumo de energia e atitudes em relação à nova tecnologia, permitindo a análise em uma população mais ampla. No projeto Facebook Newsfeed Folk Theories, a etnografia detalhou como os usuários interpretam e interagem com os algoritmos de machine learning por trás de seus feeds de notícias, informando o desenvolvimento subsequente desses algoritmos. Por fim, o Thing Ethnography combinou machine learning com etnografia para explorar como os objetos interagem dentro de ambientes humanos.
O uso bem-sucedido de dados qualitativos exclusivos em projetos de ciência de dados é evidente em várias áreas, como pesquisa de experiência do usuário, pesquisa de mercado, análise de sentimentos, pesquisa social e desenvolvimento de produtos. Na pesquisa de experiência do usuário, as empresas frequentemente realizam entrevistas detalhadas e grupos focais para coletar insights qualitativos que revelam como os usuários reais interagem com seus sites. Por exemplo, uma empresa de tecnologia pode conduzir sessões de teste com usuários para identificar pontos problemáticos e preferências que os dados quantitativos sozinhos não conseguiriam revelar. Esse feedback qualitativo informa diretamente as mudanças no design, levando a uma maior satisfação e engajamento dos usuários.
Na pesquisa de mercado, os dados qualitativos são cruciais para entender o comportamento do consumidor. Uma agência de marketing pode depender de grupos focais para explorar as percepções dos consumidores sobre um novo produto. Ao analisar as discussões dos participantes, a agência pode obter percepções sobre os fatores emocionais e motivações por trás das decisões de compra, orientando o desenvolvimento de estratégias de marketing direcionadas.
A análise de sentimentos também se beneficia de dados qualitativos exclusivos, especialmente em estudos de percepção de marca. Uma empresa pode conduzir entrevistas com clientes para explorar seus sentimentos e atitudes em relação à marca. É um meio de refinar a comunicação e abordar quaisquer percepções negativas, melhorando, em última análise, a lealdade à marca.
Em pesquisa de saúde, a experiência do paciente pode elucidar melhores diagnósticos e terapias quando fundamentados em evidências. Casos clínicos, etnografia, metaetnografias auxiliam construir uma medicina, enfermagem, nutrição, psicoterapia mais robustas e baseadas em evidências.
Finalmente, no desenvolvimento de produtos, a resposta qualitativa desempenha um papel vital. Os pesquisadores podem utilizar várias estratégias de coleta e análise de datos: acompanhamento da jornada do cliente, impressão dos usuários sobre protótipos. Essa informação auxiliam os desenvolvedores para capturarem experiências e sugestões dos usuários, com melhorias significativas no produto antes do lançamento.
Como os Dados Densos podem remediar o viés quantitativo
Incorporar dados densos na ciência de dados oferece várias vantagens:
- Proporciona uma compreensão contextual que ajuda a interpretar corretamente os resultados quantitativos, evitando simplificações excessivas e conclusões enganosas.
- Traz uma perspectiva centrada no ser humano, essencial para compreender fenômenos sociais e comportamentais complexos.
- Oferecem uma profundidade qualitativa, revelando as razões subjacentes aos padrões quantitativos observados, o que não seria possível com métodos quantitativos isolados.
- Fornecem maior acuracidade. Ao combinar dados densos com quantitativos, a triangulação fortalece a validade e a confiabilidade dos achados de pesquisa.
Ferramentas para análise de dados qualitativos
Para a análise de dados qualitativos, há uma variedade de ferramentas disponíveis, desde softwares especializados até aplicações de uso geral. Ferramentas de CAQDAS (sigla para Computer-assisted qualitative data analysis software) como NVivo, ATLAS.ti, HyperRESEARCH e MAXQDA são populares por suas funcionalidades potentes, como codificação e visualização de dados. Também existem plataformas baseadas em nuvem ou web, como Dedoose, Notion e Airtable, que oferecem flexibilidade na organização e análise de dados qualitativos. A mais recente ferraenta de CAQDAS é a Taguette, com a vantagem de ser gratuita. Wikis pessoais e ferramentas de anotações como o OneNote possuem uma capacidade subestimada para análise qualitativa.
Dá ainda para fazer muito na mão, com fichários, bloquinhos de notas e canetinhas. Mesmo planilhas como Excel e Spreadsheets permitem uma robusta análise qualitativa. Embora a análise manual também seja uma opção, especialmente nas fases iniciais de exploração de dados, o uso de frameworks de codificação estruturados pode auxiliar significativamente no processo analítico quando se junta uma massa documental difícil de se manusear.
Tenha em mente
Embora a ciência de dados tenha historicamente privilegiado métodos quantitativos, o futuro da disciplina reside na integração equilibrada de big data e thick data. Essa abordagem não apenas amplia o escopo analítico, mas também humaniza os processos de tomada de decisão, garantindo que as escolhas feitas sejam informadas tanto pelos números quanto pelas histórias, experiências e contextos humanos subjacentes. Em um mundo cada vez mais orientado por dados, essa integração será essencial para manter a relevância e a precisão das análises em um cenário em constante evolução.
Veja também
Alves, Leonardo Marcondes. “Técnicas para Analisar Dados Qualitativos.” Ensaios e Notas. April 29, 2019. https://ensaiosenotas.com/2019/04/29/tecnicas-para-analisar-dados-qualitativos/.
Alves, Leonardo Marcondes. “Como Contratar um Antropólogo.” Ensaios e Notas. February 16, 2018. https://ensaiosenotas.com/2018/02/16/como-contratar-um-antropologo/.
Paff, Stephen. “Four Innovative Projects That Integrated Data Science and Ethnography.” Ethno-Data, October 22, 2020. https://ethno-data.com.
Wang, Tricia. “Why Big Data Needs Thick Data.” Ethnography Matters. Medium, January 20, 2016. https://medium.com/ethnography-matters/why-big-data-needs-thick-data-b4b3e75e3d7.

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