Ciências cognitivas da religião

Os modos de como o ser humano compreende o fascinante conjunto de crenças e práticas as quais chamamos de religião eram um mistério. No entanto, nos últimos trinta anos tivemos um salto nas ciências cognitivas da religião que trouxeram tanto conhecimento que é até difícil absorver. Seguem agora algumas contribuições e descobertas recentes das ciências cognitivas da religião.

Ciências cognitivas da religião

O que são ciências cognitivas?

As ciências cognitivas ou ciências da cognição é um campo interdisciplinar para o estudo da aprendizagem, percepção, ação e interação nos mundos físico, social e cultural. Dialoga entre disciplinas como antropologia, ciência da computação, inteligência artificial, etologia, engenharias, linguística, neurologia, neurociências, filosofia, psicologia e sociologia.

Como vieses cognitivos afetam crenças?

Os seres humanos possuem vieses cognitivos que os tornam mais receptivos a crenças e conceitos religiosos. Um desses vieses recebe o nome de Dispositivo Hipersensível de Detecção de Agente (singla HADD em inglês). Enquanto possuímos um mecanismo cognitivo que nos permite reconhecer parâmentros, formas refinadas desse mecanismo leva os humanos a atribuir eventos e fenômenos a agentes intencionais, mesmo quando faltam evidências de agência. Essa predisposição para detectar agência, embora possa ser enraizada em processos evolucionários ou socioculturas, pode contribuir para o desenvolvimento e manutenção de crenças religiosas em entidades ou fenômenos sobrenaturais. Assim, reforça-se a crença na intervenção divina e na ideia de que há um propósito ou objetivo por trás dos fenômenos naturais, validando cosmovisões religiosas.

Seria racional acreditar em coisas religiosas, tipo milagres?

A questão é complexa e vem sendo debatida desde David Hume. Dado o caráter extraordinário de fenômenos categorizados como milagres, é díficil o estudo direto. Então, dependemos de testemunho. Contudo, o testemunho desempenha um papel crucial na transmissão e sustentabilidade das crenças religiosas. O testemunho de crenças religiosas geralmente carrega características como credibilidade percebida, confiabilidade e coerência com o conhecimento existente e as normas culturais. Crianças e adultos avaliam o testemunho de ideias religiosas considerando fatores como a confiabilidade da fonte, consistência com experiências pessoais, consenso social e o impacto emocional do testemunho. Ao avaliar as alegações de milagres, os indivíduos também podem confiar em vieses cognitivos, como viés de confirmação ou raciocínio motivado, que podem influenciar sua avaliação da validade do testemunho.

Podemos compreender o que o outro crê ou vive como verdade religiosa?

A teoria da mente, a capacidade de atribuir estados mentais, intenções e crenças a si mesmo e aos outros, desempenha um papel crucial na conceituação de deuses, espíritos e seres sobrenaturais. Os humanos, por meio de sua bem desenvolvida teoria da mente, projetam mentes e intenções em indivíduos além de si. Isso nos faz humanos, empáticos por uma melhor compreensão de ações e comportamentos — mas fato é que jamais saberemos o que se passa na mente alheia. Contudo, as ciências cognitivas e a fenomenologia permitem entender as evidências das atividades cognitivas alheias.

Visto que a realidade religiosa frequentemente adquire aspectos antropomórficos, conhecer a antropologia filosófica permite conhecer a própria religião.

Seria o ser humano um animal religioso?

A hipótese de que os humanos têm uma propensão natural para acreditar em seres sobrenaturais pode ser avaliada com base em pesquisas atuais em ciência cognitiva e antropologia. Essa inclinação decorre de mecanismos cognitivos, como detecção de agência, teoria da mente e reconhecimento de padrões, que contribuem para perceber a intencionalidade e o propósito no mundo. Agentes sobrenaturais são conceituados como possuidores de mentes e intenções semelhantes aos humanos. Embora o teísmo possa ser intuitivo para muitos, fatores como educação cultural, experiências pessoais e variações de processamento cognitivo podem levar alguns indivíduos a adotar perspectivas ateístas, questionando ou rejeitando a existência de seres sobrenaturais.

Stewart Guthrie e Pascal Boyer oferecem perspectivas distintas sobre as origens e vantagens das crenças religiosas. A visão de Guthrie gira em torno da ideia de que as crenças religiosas são provocadas por nossa capacidade inata de detectar agentes antropomórficos no ambiente. De acordo com Guthrie, os humanos têm um viés cognitivo que os leva a perceber agentes intencionais por trás de eventos e fenômenos, mesmo quando não há evidências claras de agência. Esse viés, conhecido como “dispositivo de detecção de agências hiperativas”, contribui para o desenvolvimento de conceitos religiosos envolvendo seres sobrenaturais com mentes e intenções semelhantes às humanas.

Por outro lado, a hipótese de Pascal Boyer se concentra na memorabilidade das crenças religiosas. Boyer sugere que as crenças religiosas têm uma vantagem sobre outros tipos de crenças porque possuem características cognitivas que as tornam mais memoráveis. Esses traços incluem conceitos contra-intuitivos, violação de expectativas intuitivas e ressonância emocional. Segundo Boyer, essas características aumentam a relevância e a probabilidade de as crenças religiosas serem transmitidas e lembradas em contextos culturais, contribuindo para sua persistência ao longo do tempo.

Como as práticas rituais afetam os vínculos sociais?

As práticas rituais servem a vários processos psicológicos e sociológicos dentro das tradições religiosas. Elas criam um senso de identidade de grupo, promovem a coesão social e promovem experiências emocionais compartilhadas. Os rituais contribuem para a formação de laços sociais nas comunidades religiosas, proporcionando aos indivíduos um sentimento de pertença, identidade e propósito compartilhados.

Por outro lado, o componente experiencial da religião é essencial para instilar e manter atitudes religiosas. Experiências religiosas, como orações e ações ritualizadas, desempenham um papel significativo na promoção de um senso de conexão, transcendência e envolvimento pessoal com o divino. Essas experiências contribuem para a formação e reforço das crenças religiosas ao proporcionar aos indivíduos encontros subjetivos que validam e fortalecem sua fé. Além disso, as práticas religiosas, incluindo rituais comunitários e disciplinas espirituais individuais, servem para manter e sustentar as crenças religiosas, promovendo um senso de continuidade, identidade e coesão social dentro das comunidades religiosas.

E quando a fé choca com a realidade?

As pessoas experimentam dissonância cognitiva quando suas crenças ou ações entram em conflito. No contexto da religião, a dissonância cognitiva pode desempenhar um papel na manutenção e reforço de crenças e comportamentos religiosos. Os indivíduos podem se envolver em processos cognitivos como racionalização ou reinterpretação para reduzir o desconforto de crenças conflitantes, preservando sua visão de mundo religiosa.

Qual o lado bom da religião?

Vários estudos apontam correlações entre crenças e práticas religiosas e bem-estar emocional. Envolver-se em atividades religiosas, como orações ou participar de comunidades religiosas, pode fornecer apoio social, senso de propósito e conforto emocional para os indivíduos. A religião muitas vezes atua como um mecanismo de enfrentamento e uma fonte de consolo em tempos de angústia.

Quais são as funções adaptativas da religião?

As crenças e práticas religiosas oferecem algumas vantagens adaptativas. Crenças e rituais religiosos facilitam a coesão social, a cooperação e a identidade de grupo, aumentando a sobrevivência e o sucesso reprodutivo. Em paradigmas funcionalistas, evolutivos e sociobiológicas o papel da religião pode ser adaptativo, porém não necessariamente benéfico. Vide, em um exemplo extremo, suicídios coletivos e atos terroristas motivados pela religião. No entanto, de forma agregada, o ser humano existe em sua condição presente porque é moldado por um conjunto de práticas as quais chamamos de religião.

As Ciências Cognitivas da Religião ajudam a entender melhor escrituras sagradas?

Estudos empíricos sobre práticas de leitura revelam que a compreensão dos textos sagrados deve-se mais aos seus contextos de produção, transmissão e recepção do que apenas à mera decodificação de palavras em uma página. Os métodos aceitos, as estratégias interpretativas e pressupostos compartilhados por uma dada comunidade religiosa são determinantes na interpretação de escrituras religiosas. Isso é demonstrado tanto pelo peso da enculturação quanto por favores cognitivos, como o efeito Asch.

As descobertas das Ciências Cognitivas da Religião são ameaças à fé?

Não. Exceto para concepções religiosas do tipo “Deus-das-lacunas”, essas descobertas das ciências cognitivas na verdade reforçam, legitimam e validam as experiências religiosas.

Conhecer os vieses, tendências e mecanismos cognitivos que moldam as crenças e os comportamentos humanos permitem aos crentes uma compreensão mais profunda da natureza humana. Compreender os fundamentos cognitivos das experiências religiosas permite uma interpretação mais matizada e informada da própria fé, reforçando a convicção e a autenticidade das crenças religiosas.

Tais descobertas também fornecem evidências empíricas que apóiam a realidade e o significado das experiências religiosas. Ao reconhecer as descobertas científicas, os indivíduos religiosos podem validar seus encontros pessoais com o divino, considerando o caráter dessas experiências em outras culturas e religiões.

Formas sistemáticas de reflexão religiosa — a teologia cristã, o kalam e tasuf islâmico, os caminhos ensinados nas religiões dhármicas — bebem do pensamento crítico e auto-reflexão. Ao examinar os vieses e mecanismos cognitivos que influenciam as crenças religiosas, esses pensadores podem cultivar uma abordagem mais criteriosa de sua fé, promovendo uma compreensão mais profunda das nuances e complexidades de suas tradições religiosas.

SAIBA MAIS

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