O deus portátil

No século XVI os argutos cronistas Jean de Léry e Hans Staden notaram que os habitantes do Novo Mundo tinha uma divindade portátil como o principal elemento religioso. Dormiam com o objeto ao lado, conversavam com ele, trocavam ideias, tomavam decisões e até partiam para a guerra empunhando-o. Agora, troque o maracá pelo smartphone e a religião dos brasileiros permanece a mesma.

Jean de Léry (c. 1534 – c. 1611) foi um missionário huguenote da malfadada expedição de tentar fundar a França Antártica na Baía de Guanabara em 1557-1558. Deixou um relato das crônicas de sua viagem e documentou as práticas dos brasileiros nativos.

Têm assim o instrumento a que chamam maracá e que faz mais barulho do que uma bexiga de porco cheia de ervilhas. Os brasileiros os trazem em geral na mão e quando me referir à sua religião direi qual a sua opinião acerca do maracá e da sua sonoridade, sobretudo depois de enfeitados com lindas plumas e empregados em determinada cerimônia.

Finalmente sob um novo aspecto ainda podemos dizer que, deixando-o seminu, calçado e vestido com as nossas frisas de cores, com uma das mangas verdes e outra amarela, apenas lhe falta o cetro de palhaço. Acrescentai-lhe agora na mão o maracá.

Os habitantes acreditam nisso não deixam de pôr farinha, carne e peixe ao lado dos maracás e nem esquecem o cauim. Em geral deixam assim os maracás no chão durante quinze dias a três semanas, após o que lhes atribuem santidade e os trazem sempre nas mãos dizendo que ao soarem os espíritos lhes vêm falar.

Hans Staden (c. 1525 – c. 1576) foi um mercenário alemão que ficou cativo entre os tupinambás. Também registrou suas experiências de viagem em um livro que foi um best-seller na época.

Há algumas pessoas entre eles a que chamam de pajés. Eles são ouvidos como aqui se ouvem os adivinhos. Percorrem o território uma vez ao ano, vão de cabana em cabana e anunciam que um espírito vindo de muito longe esteve com eles e lhes delegou poder, que todos os chocalhos – os maracás – poderiam falar e receber poder; se eles, os pajés, pedirem, essas coisas lhes serão concedidas. Cada qual então faria o voto de que seu chocalho recebesse poder. Preparam uma grande festa, bebem, cantam e fazem adivinhações, e se entregam a diversos usos estranhos.

Quando vêm para a cabana, os feiticeiros sentam-se no lugar nobre e fincam os maracás ao lado de si, no chão. Os demais também fincam os seus, junto aos dos feiticeiros, e cada um dos selvagens dá aos feiticeiros um presente, flechas, penas ou coisas que penduram nas orelhas, para que seu maracá não seja esquecido.

Quando estão todos reunidos, o adivinho pega os maracás um a um e lhes aplica uma erva a que chamam de pitim. Então ele segura o chocalho bem próximo à boca, agita-o e lhe diz: “Né cora”, agora fale e faça-se ouvir quando estiver aqui dentro. A seguir fala em voz alta e rapidamente uma palavra de modo que não se pode reconhecer direito se é ele ou o chocalho que emite o som. As pessoas acreditam que é o chocalho, mas é o feiticeiro mesmo quem fala. Assim ele faz com todos os chocalhos, um depois do outro, e todos os selvagens pensam que seu chocalho tem grande poder. Então os
feiticeiros ordenam que vão à guerra e capturem prisioneiros, pois os espíritos que habitam os maracás se deleitam comendo carne de escravos. Depois disso partem para a guerra.

Quando o pajé, o feiticeiro, finalmente transforma em deus todos os chocalhos, cada um pega o seu, chama-o de “querido filho”, faz para ele uma pequena barraca na qual o coloca, estende-lhe comida e pede-lhe tudo de que necessita, exatamente como pedimos ao verdadeiro Deus. Agora esses são os seus deuses.

SAIBA MAIS

STADEN, Hans. Duas viagens à Terra do Brasil.

DE LÉRY, Jean Viagem à Terra do Brasil Tradução integral e notas de Sérgio Milliet. São Paulo: Martins, 1960.

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