O casal já estava maduro. Só tinham um ao outro naquela pobre casinha no canto mais remoto de um vilarejo na Frígia. Abraçavam-se com o carinho maturado pelo longo amor. Um dia, apareceram dois estranhos batendo à porta.
Baucis, a esperta velhinha, recebeu-os. Os estranhos — um senhor com um semblante imponente e um rapaz de raciocínio e fala ligeiros — bateram em cada porta da vila para serem enxotados. Filémon, o marido, arranjou-lhes a decrépita cama reclinada do modo mais confortável possível.
O casal desdobrou-se em abrigar a dupla de viajantes cansados. Acomodaram os peregrinos, reavivaram a lareira e franquearam-lhes a sua parca despensa.
Serviram um resto de vinho. Alegrados pela bebida, passaram uma agradável tarde entretendo os hóspedes. Então, o casal notou algo estranho. O jarro não acabava.
O casal percebeu que seus hóspedes não eram ordinários: eram deuses!
Em um misto de choque e vergonha por acreditarem que não ofertaram o suficiente, os idosos saíram em uma carreira atrás do único ganso para oferecer aos divinos hóspedes.
O ganso driblou-os facilmente e foi refugiar-se às sombras de Zeus e Hermes. Os deuses dissiparam-lhes as preocupações. Estavam satisfeitos, foram recebidos com pouco, mas com uma sincera hospitalidade.
Então, o semblante de Zeus mudou. Como um céu que se fecha e saem trovões, Zeus anunciou com sua voz tonitruante:
“Somos Zeus e Hermes. Bem-aventurados foram vocês, ó Baucis e Filémon, que não sabendo receberam estranhos com hospitalidade. O mesmo não fizeram os habitantes dessa cidade. Fujam para as montanhas para que escapem da minha ira!”
O casal encontrou energia para subir penhasco acima. Quando estava no cume, voltaram-se e viram o vale ser destruído. No lugar da cidade agora havia um pântano. Porém, o casebre onde passaram toda suas vidas foi preservado e transformado em templo. Mármore e ouro tomaram o lugar das gastas pedras e madeiras apodrecidas.
Hermes, o loquaz mensageiro, aproximou-se do espantado casal.
“Mediante sua graciosa hospitalidade receberam a graça divina: vivam em sua casa e que nunca sua despensa fique vazia”.
O casal, prostrado reverentemente, pediu mais uma coisa:
“Meus senhores, somos gratos por essa dádiva, mas pedimos que jamais vejamos um a tumba do outro”.
Assim foi feito. Os deuses concederam o pedido. Baucis e Filémon ainda viveram muito tempo. Morreram ao mesmo tempo, diante da casinha que se tornou templo. No lugar onde caíram à terra nasceram um carvalho e uma tília, cujos ramos se abraçam.
O mito de Filémon e Baucis aparece em uma única fonte, nas Metamorfoses de Ovídio. Não obstante, os bons modos da hospitalidade, a xenia, era amplamente valorizada. Na Odisseia, Ulisses retorna disfarçado a Ítaca. Na Bíblia, a xenia aparece abundante, sendo hoje um tema infelizmente esquecido por teólogos e igrejas. Fruto de um ambiente comum, não longe da Frígia, em Listra, os apóstolos Paulo e Barnabé foram confundidos com Zeus (Júpiter) e Hermes (Mercúrio), conforme narra Atos 14:11-12.
O ideal de envelhecer junto com um grande amor e morrer à mesma época recebe o nome de síndrome de Filémon e Baucis em alguns jargões forenses.
SAIBA MAIS
OVÍDIO. Metamorfoses. Livro 8, linhas 8.616-8.724.
YONG, Amos. Hospitality and the other: Pentecost, Christian practices, and the neighbor. Orbis Books, 2015.
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