
Os filósofos iluministas tinham a ingênua esperança de que bastavam a plena liberdade de expressão, a universalização do ensino e o avanço da ciência para dissiparem as trevas da ignorância. A avalanche informacional provou o contrário. A ignorância não é a ausência do conhecimento, mas a produção, circulação e consumo deliberados da mentira.
A complexidade desse fenômeno já é estudado por uma disciplina acadêmica própria: a agnotologia. Esse campo interdisciplinar oferece com base na filosofia, psicologia, sociologia, estudos da comunicação, dentre outros, um modelo de como a coisa degringolou.
Vivemos em uma conjuntura propícia para uma lucrativa — em termos financeiros, ideológicos e políticos — indústria da inverdade. Essa produção é possível porque opera em três níveis: individual, meso (o das interações) e sistêmico.
Individualmente, o sentimento de privação epistemológica gera o “prossumer” ideal da ignorância. Essa privação epistemológica é condescendente. Ao ser preterido da mesa de discussão de assuntos que lhe afetam, o indivíduo sente-se vulnerável, lesado e sem importância. Já Spivak (2003) alertava contra violência epistêmica: o impedimento de pessoas subalternas de terem voz sobre seus próprios interesses porque outros afirmam saber melhor quais são esses interesses. Assim, em um fórum democrático há o anseio de considerar sua opinião (doxa) tão igual e importante quanto ao conhecimento (episteme) dos especialistas.
A autoconfiança em suas próprias percepções, ideias e emoções — mesmo que totalmente errôneas — validou a ampliação em escala do desconhecimento. Embora haja uma reivindicação legítima sob o princípio de “nada nós sem nós”, o indivíduo em busca de mentiras reconfortantes não está seriamente interessado em conhecer. Antes, quer reafirmar sua agência. Desse modo, da hesitação à medicina surge o ardente anti-vacina. Da exclusão do processo democrático surge o neo-populista pró-ditadura. Da incompreensão de fenômenos sociais surge o teórico da conspiração denunciando um suposto “marxismo cultural”. Do sentimento de exclusão de políticas públicas surge o pobre minoritário contra mobilizações identitárias ou classistas. Afinal, o indivíduo-cliente quer ser tratado como pessoa consumidora, não como categoria.
Além disso, há a mera misiologia ou ódio ao conhecimento e a razão. Esse ódio pode ter várias raízes, desde as explosões emocionais no confronto com verdades incômodas até a raiva e a preguiça de ativamente ter de usar as faculdades mentais. Sim, pensar requer um esforço ativo e isso pode ser dolorido a muitas pessoas. Afinal, quem encontra prazer em analisar o ciclo de Krebs com o arcabouço da ontologia heideggeriana? Assim, fica mais fácil fazer concessões, o que é normal, não dominamos todos os campos, mas confiamos em seus resultados institucionais. No entanto, é danoso diante do desconhecido optar por seguir gurus, pseudociências e teorias da conspiração ao mesmo tempo que lançam campanhas contra as universidades e os cientistas.
Sentindo-se poderoso e inteligente, o ignorante conduz “experimentos”, postando-os no Youtube, local também onde faz suas “pesquisas” que sempre confirmam seus vieses. Alimentado por seus dogmas obscurantistas, tenta “provar” seu ponto e “refutar” os sabichões que nunca viram aquilo que ele, o homem comum mas esperto, conseguiu notar. Daí as expedições à borda da terra ou jornadas em foguetes domésticos. Daí a coleção de anedotas da eficácia da cloroquina ou de antibióticos para derrubar a COVID. Daí influenciadores autointitulados especialistas ganhando uma audiência cativa e fanática disposta a tudo.
O que era para ser uma angústia individual ganhou dimensões sociais pelas novas mídias online. Assim, em um nível meso, o da interação entre indivíduos, a ruína da vida comunitária e o consumismo foram canalizados para grupos de pessoas com medos, anseios, raivas compartilhados. Não precisa mais da proximidade física. É possível encontrar grupos que apoiem suas ideias em qualquer lugar. E não precisa ser nos rincões obscuros da internet. Desde comunidades de gamers até grupos de igreja haverá público para propagar crenças infundadas. Daí, o terraplanista não precisa se envergonhar por não conhecer o mínimo de geometria, astronomia ou física; basta a aprovação de seus pares. Se a família e a “sociedade” cobram para o rapaz inseguro desenvolva um relacionamento afetivo para firmar seu status de macho, o incel encontra consolo entre seus semelhantes que se sentem rejeitados pelas mulheres e ressoam espantalhos antifeministas.
Aqui a intencionalidade pesa muito. Informações inverídicas são compartilhadas de boa-fé com base em emoções e afinidades. Sentimentos de medo, raiva, superioriedade e pertencimento a um grupo orientam a criação e transmissão de memes, textos e vídeos carregados de ideologias políticas, morais e religiosas.
A necessidade de pertencimento reforça as crenças em obscurantismos. O constante clima de combatividade nesses nichos indicam um raciocínio maniqueísta. O mundo está dividido entre “nós” e os “outros”. Obviamente, o “nós” são os mocinhos da estória. Esse suposto conflito dicotômico impede que se construam pontes ou o indivíduo ouse a pôr um pé do outro lado da linha. Quando a dúvida aponta para uma vida fora da caverna, o temor do ridículo e desprezo daqueles que o acolheram aprumam o indivíduo a considerar somente as sombras como reais.
Este neotribalismo virtual da ignorância não existiria se não houvesse uma dimensão sistêmica. Em uma perspectiva macro, são várias as estruturas que integram agendas às ações, bem como canais e meios para efetivar os processos de produzir e lucrar com a desinformação. Não se trata de algo recente. A reutilização e falsificação de informações em monumentos eram corriqueiros até no antigo Egito. A supressão de informações via censura ou intimidação também é antiga, a exemplo, a queima de todos os livros discordantes da propaganda oficial do Primeiro Imperador da China.
Os historiadores da ciência Robert Proctor (2008) e Naomi Oreskes (2011) relatam como deliberadamente a indústria tabagista passou a produzir dúvida e ignorância dos males do cigarro. Começavam encomendando estudos científicos sobre os efeitos do tabaco. Como o método científico gera sempre novas dúvidas, então faziam recortes nos resultados e vendiam a ideia que seria inconclusivo afirmar que o fumo causa câncer. Depois bastava contratar relações públicas que faziam lobby em instituições científicas, mídia de massa e autoridades reguladoras.
Outros setores aproveitam da mesma tática. Grupos religiosos que até mantém universidades e possuem seus ministros com título de doutor seletivamente apropriam do conhecimento factual para reforçar suas crenças enquanto rejeitam parte desse conhecimento quando contradizem seus dogmas. Esse anti-intelectualismo passa a ser mais sofisticado porque não é do mesmo tipo dos grupos sectários populares que vivem isolados. Antes, a aura de respeitabilidade conferida por suas instituições legitimam um constante desprezo e desconfiança pelo conhecimento científico. E contam com um exército de apologistas e influenciadores para reforçar seus dogmas e intimidar qualquer pensamento independente que soe como ameaça.
Aliando técnicas de marketing com motivações políticas, financeiras, religiosas, ideológicas a produção e consumo de desinformação virou um negócio lucrativo pautado em medo, incerteza e dúvida (FUD — Fear, uncertainty, and doubt — no jargão marketeiro). Certa vez, um conhecido meu possuía uma informação privilegiada que afetaria uma grande empresa. Fazíamos piada de que ele logo iria capitalizar naquilo. Com um sorrisinho, desconversava. Um dia, em tom de triunfo, contou que não iria utilizar aquele trunfo. Ele vendeu-o a um lobista que manipulava o mercado fiinanceiro (“short selling“) conforme o interesse da clientela. E falou dos vários canais para essa manipulação. Um deles me chamou a atenção. Havia na época um radialista na cidade que vendia um “pacote” de insinuações, falsos alarmes e demonização de marcas, produtos e pessoas. Por um preço considerável o radialista transformava qualquer coisa em câncer ou pessoa em demônio reptiliano durante algumas semanas. Na década seguinte, o radialista que era uma obscuridade local criou um império multiplataforma de desinformação. Sua commodity: a mentira.
Hoje há redatores, matemáticos, publicitários e designers gráficos fazendo memes horríveis que sua tia repassa pelo whatsapp como se fosse a última revelação.
Não é coincidência que o avanço do consumo informacional coincida com o questionamento das instituições sociais complexas: o estado democrático de direito, a educação pública, a academia e a ciência. Até mesmo tradições religiosas e suas autoridades passaram a ser questionadas. Nesse ambiente de incertezas, messias políticos, econômicos (o que explica bilionários ter fãs e pirâmides serem populares) e de “vidas alternativas” lucram vendendo confianças. Em um ambiente de insegurança, esses conmen não precisam oferecer algum conhecimento sólido: é fácil demonizar os outros e se apresentar como a bala de prata que soluciona tudo.
Incoerentemente, os adeptos da ignorância que contestam as instituições geram eles próprios suas instituições “alternativas”. São novos movimentos desmobilizadores e partidos políticos “antipartidos”. São cursos, conferências, livros e professores da desinformação. São supressores organizados de movimentos sociais.
O mencionado Proctor viria a ser um dos proponentes da agnotologia como disciplina acadêmica. Essa disciplina, contraposta à epistemologia, estuda o que não sabemos. Também investiga essa produção, circulação e consumo deliberados da ignorância. A notória pesquisadora desse campo, Naomi Oreskes, aponta que é suficiente um punhado de gente com interesses e poder para produzir o caos da ignorância.
A agnotologia é uma ciência necessária. Já não bastava as ameaças à existência humana com guerras, a exploração da própria espécie, as atividades ecologicamente desastrosas que resultam em mudanças climáticas e epidemias, agora a ignorância é massivamente letal. Mesmo quem não caia nessas balelas sentem seus efeitos.
SAIBA MAIS
Harambam, Jaron; Aupers, Stef. ‘Contesting Epistemic Authority: Conspiracy Theories on the Boundaries of Science’. Public Understanding of Science, 24 (4) 2015: 466–80.
Oreskes, Naomi; Conwayand, Erik M. Merchants of doubt: How a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming. Bloomsbury, 2011.
Proctor, Robert N.; Schiebinger, Londa (orgs.). Agnotology: The Making and Unmaking of Ignorance. Stanford University Press, 2008. Prefácio e Capítulo 1
Reusing, Luciana; Wachowicz, Marcos. “A agnotologia no processo de conhecimento na biotecnologia.” P2P E INOVAÇÃO 6, no. 1 (2019): 35-48.
Spivak, Gayatri Chakravorty. “Can the subaltern speak?” Die Philosophin 14, no. 27 (August 2003): 42-58. https://doi.org/10.5840/philosophin200314275
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InterD: Edição #15, conversa com Yurij Castelfranchi, professor de Sociologia da ciência e da tecnologia da UFMG.