Posições metaéticas

Em situações normais já enfrentamos decisões difíceis. Em circunstâncias extremas, fazer escolhas passa a ser doloroso. Mesmo em dilemas que afetam nossa vida ou a alheia há corrimões que orientam qual a melhor decisão. É esse o papel da ética como disciplina acadêmica.

Há muitas definições de ética. Uns consideram a moral a convenção de comportamento desejados ou valorados em uma determinada sociedade enquanto ética seria abstrata, universal e a priori. Para outros, seria o inverso. E as definições contrapostas não param. Uns veem a ética como o ser/fazer e a moral com o dever-ser. Há quem veja a moral sustentada por princípios religiosos e a ética pela razão. Escolha a definição que melhor faça sentido para ti.

A ética pode ser vista com um distanciamento maior, a análise de metaética. Nessa perspectiva, cada modo de justificar as decisões levam em conta os críterios e objetivos aos quais se atribuem maior importância.

A metaética parte das questões do fundamento: o que é certo e errado? E como justificar essa distinção?

  • Realismo moral. O certo ou o errado são fatos morais objetivamente apreensíveis. Mas essa posição leva ao problema de fundamentação: o que são fatos morais, o que determina a validade de uma decisão ética. Outra questão é a dicotomia do absolutismo moral (há regras morais universalmente válidas) versus relativismo moral (regras morais são contingentes à situação concreta, por exemplo, ao contexto cultural[1]), dentre outros.
  • Antirrealismo moral. O ideal moral (o certo e o errado) somente são categorias a priori. Existem somente em abstrato, no sistema de valor (axiologia) e é distinto da prática moral (a atualização ética). Assim, fatos morais não existem como coisas, mas são as atitudes e valores pessoais ou sociais que devem ser categorizadas como morais.

Os sistemas éticos ocidentais tendem ao realismo moral, mas há intersecções com o antirrealismo. Embora a moralidade seja um universal cultural, o conteúdo da moralidade é condicionada a cada sociedade e, até mesmo, a cada indivíduo.

Meio a tantos caminhos para se tomar decisões éticas, as principais posições podem ser agrupadas em correntes metaéticas:

Ética consequencialista

A culpa desse modelo é imputada a Maquiavel. Ao tentar encontrar justificativas para uma estabilidade política dos conturbados pequenos estados italianos do Renascimento, Maquiavel propôs a autonomia das decisões, separando-as das normas morais religiosas. Resumida no ditado de que “os fins justificam os meios” na busca do “bem maior”, essa posição avalia as consequências dos atos. Tal proposta ganhou um rigor quase matemático com os filósofos ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mills , proponentes do utilitarismo. A aceitação de certas assimetrias injustas em nome da equidade, conforme John Rawls propõe, seria um exemplo.

Ética deontológica ou ética do dever

Formulada com maestria por Kant. Afirma que os atos são morais quando realizados no cumprimento do dever dos mandados universais. Por mais que valorize o sujeito, não é uma posição subjetivista. Conceito de imperativo categórico, tratar pessoas como fins e não como meios, ou o conceito de responsabilidade moral, faz que o sujeito tome decisões mesmo detrimental a si ou a outrem. Um exemplo de dilema seria “é sempre errado mentir, mesmo que a mentira dissuada alguém a tomar veneno”.

Ética da virtude

É fundamentada no caráter. O bem seria o que uma pessoa boa faz. Discutida por  Aristóteles, Manuel Atienza, Alasdair MacIntyre, argumenta que se cada ator cumpre seu propósito e função apropriada e com efetividade, os meios e resultados serão morais. A moralidade residiria em traços de personalidade. O caráter a ser cultivado depende de buscar a eudaimonia, a busca as melhores condições possíveis para o ser humano: a felicidade, mais virtude, moralidade e uma vida significativa.

Ética do cuidado

Busca o equilíbrio entre a necessidade de receptividade nos relacionamentos (prestar atenção, ouvir e responder) e os custos de perder a conexão consigo mesmo ou com os outros. Presente nos ensinamentos éticos de Jesus apresentado nos evangelhos, na casa de Hilel e por Buda, foi proposta em termos éticos contemporâneos por Carol Gilligan, psicóloga que notou diferenças de gêneros em decisões éticas. A decisão ética deve ser ponderada por meios indutivos, considerando fatores contextuais, ao invés de uma aplicação dedutiva ou matemática de normas éticas. Empatia e compaixão forneceriam as diretivas.

UM EXERCÍCIO

 A filósofa Philippa Foot (por sinal, uma expoente da ética da virtude) formulou um problema clássico nos seguintes termos:

Um bonde descontrolado está em vias de atropelar cinco pessoas amarradas na pista. Contudo, é possível apertar um botão que direcionará o bonde para um percurso diferente. Entretanto, há outra pessoa também amarrada nessa pista. Qual seria a decisão moral?

E como você decidiria?

SAIBA MAIS

Alexander, Larry and Michael Moore, “Deontological Ethics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.), https://plato.stanford.edu/archives/sum2021/entries/ethics-deontological/

Gilligan, Carol. In a different voice: Psychological theory and women’s development. Harvard University Press, 1982.

Hooker, Brad, “Rule Consequentialism”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.) https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/consequentialism-rule/

Hursthouse, Rosalind and Glen Pettigrove, “Virtue Ethics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), https://plato.stanford.edu/archives/win2018/entries/ethics-virtue/


[1] Por tudo que seja mais sagrado, evite a confusão terminológica entre relativismo cultural (avaliar cada cultura em seus próprios termos) e relativismo moral (ausência de fatos morais universais). Não há relação necessária entre essas duas posições, apesar de muitos livros-textos e mesmo eticistas profissionais empregarem os termos intercambiavelmente. Mesmo posições morais relativistas argumentadas por particularismo cultural devem ser criticamente avaliadas, principalmente em relação dos dados etnográficos e paradigmas avaliativos.

2 comentários em “Posições metaéticas

Adicione o seu

  1. Excelente reflexão filosófico-moral, parabéns! Achei particularmente oportuna a distinção entre relativismo moral e relativismo cultural — comumente confusa e omitida por muitos filósofos analíticos de língua inglesa. Assim como não se trata de voltar a uma condição pré-moderna (onde a religião seria o cimento social da normatividade ético-moral) ou de celebrar o pós-moderno (dada a liquidez, crises e contradições da nossa própria modernidade), uma terceira via do pensamento pós-metafísico, como a habermasiana, favorece uma interessante convivência com o relativismo cultural, sua diversidade e irreversível globalização, sem no entanto subscrever ao relativismo moral ou ceticismo ético. http://www.geocities.ws/nythamar/naturalism.html

    Curtido por 1 pessoa

  2. Uma vez mais, obrigado pelas intervenções perspicazes. Não sou filósofo e meu uso da filosofia é instrumental para meu campo de trabalho (antropologia da interpretação bíblica). Vejo muita visão idealizada (e idolizada) da realidade social, principalmente pela busca de parâmetros para orientação de vida pessoal e coletiva.
    É espantoso e entristecedor o quanto a busca de soluções “enlatadas” heteronômicas, quer religiosas, cientificistas, político-ideológicas, e agora a pseudociência e obscurantismo em detrimento da ética.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Um site WordPress.com.

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: