
Os eventos dos livros aconteceram no consulado de Públio Cornélio Cetego e de Marco Baebio Tamfilo[1], 535 anos após a morte[2] de Numa Pompílio, o pacífico e pio rei de Roma. Naquele ano, marcado por guerras na Hispânia, ataques de piratas da Ligúria e Ilíria, uma severa estiagem na qual nenhuma chuva caiu durante seis meses e uma epidemia, a República não podia sofrer mais um abalo.
Tentando aumentar sua produtividade em meio à seca, certo escriba, proprietário de um campo ao pé do Janículo, uma das colinas de Roma, decidiu expandir o cultivo. O escriba, as fontes[3] divergem se Cneio Terêncio ou Lúcio Petílio, mandou que seus empregados arassem uma nova área perto do monte.
Quando aravam ou cavavam, depararam-se com dois caixões de pedra. Os dois baús de pedra mediam cerca de 2,5 metros de comprimento por 1,20 de largura, com as tampas fechadas com chumbo.
Cada uma delas trazia uma inscrição em latim e grego. Uma dizia que Numa Pompílio, filho de Pompo e rei dos romanos, estava enterrado lá, e outra dizia que continha seus livros.
O sábio Numa Pompílio deixou uma boa memória entre os romanos. Nutria uma amizade com os deuses e com os homens. Pacífico, ensinou os beligerantes romanos a cultivar valores mais elevados, como honrar a religião, cumprir a lei e tratar os inimigos com humanidade. Evitando a idolatria, proibiu os romanos de cultuar as estátuas dos deuses.
Foi este rei quem fez os romanos considerarem os marcos de limite das propriedades como sagrados. Cada um deveria se contentar com suas próprias posses, sem se apropriar das dos outros, quer pela violência, quer pela fraude.[4]
Quando o proprietário, por sugestão de seus amigos, os abriu, encontrou a real tumba vazia. Nenhum vestígio de restos humanos.
No outro caixão de pedra – quase no centro do baú – havia uma pedra quadrada, amarrada em todos os lados com cordas envolvidas em cera. Nela havia dois maços de folhas atados com cordas enceradas, cada um contendo sete ou seis livros, não apenas intactos, mas aparentemente novos. Os maços também estavam cuidadosamente recobertos com folhas cítricas. Esses livros eram feitos de papiro e, mais notável ainda, duraram tantos anos enterrados no solo.
Metade dos livros estava em latim e versava sobre direito pontifício, com os decretos que Numa fez para instruir o bom andamento da religião romana. Outra metade deles, em grego, tratava sobre filosofia. Especulou-se que seriam certas doutrinas relativas à filosofia pitagórica; mas mais tarde Cícero provou que tal hipótese seria anacrônica. Numa Pompílio teria vivido ao menos uns 150 anos antes de Pitágoras[5].
A descoberta foi excitante. Numa Pompílio talvez quisesse que a religião fosse praticada de coração e transmitida publicamente e por isso teria sido sepultado junto das escrituras. Essa sábia decisão evitava que seus livros virassem instrumentos de legalismo sem qualquer deferência aos propósitos de seus conteúdos. Mas agora os sentidos originais de sua doutrina seriam conhecidos.
Os livros foram primeiro examinados pelos amigos. Depois, os papiros começaram a circular. À medida que aumentava o número dos leitores e os livros se tornavam amplamente conhecidos, Quinto Petílio, o pretor da cidade, ficou ansioso para lê-los e os tomou do escriba.
Na época, os dois estavam em bons termos. Quando Quinto Petílio fora questor, ele teria dado a Lúcio Petílio um lugar no decúrio. Era bom fazer negócios com gente como a gente, no caso, a gens Petilii, especialmente porque nesse ano a Lex Baebia dificultou cada vez mais a corrupção eleitoral.
O Pretor sabia que as coisas ultimamente estavam ficando cada vez mais complicadas. Dez anos antes, o grande líder militar Mânio Acílio Glábrio teve o demérito de ter de convencer o Senado a dar-lhe as honras de uma entrada triunfal em Roma após vencer Antíoco, o Grande, na Batalha das Termópilas. O tão piedoso Glábrio fazia de tudo pela República e até outorgou aos pontífices o poder de alterar o calendário conforme fosse conveniente. Depois, o pobre Glábrio ainda enfrentou a ingratidão quando um de seus comandados teve a insolência de denunciar que o militar tinha se apropriado indevidamente dos tesouros de Antíoco. O heroico Glábrio teve de retirar sua candidatura ao cargo de censor.
Depois de ler as passagens mais importantes, os livros perturbaram o Pretor. A maioria das passagens ameaçava levar à dissolução da religião nacional, pois explicava as motivações das instituições sagradas. Os ritos da religião não tinham mais a aura de mistério. Cerca de cinco anos antes, um culto secretivo, as bacanais, ameaçou Roma com seus ritos restritos somente aos iniciados e realizados nas sombras da noite. O Senado, sem saber ao certo do que se tratava, preferiu proibir as bacanálias e executar muita gente[6]. Agora o desafio se repetia.
Apesar de a descoberta das escrituras sagradas dever a ser louvada e de interesse público, Lúcio prometeu que lançaria os livros no fogo. Porém, antes disse que gostaria de saber se poderia reivindicá-los pelo direito de posse ou pela autoridade dos tribunos da plebe. Claro, isso sem perturbar suas relações amistosas com o Pretor. O escriba abordou os tribunos e eles deixaram o assunto para o Senado.
No Senado, o Pretor afirmou que os livros não deveriam ser preservados. Os ritos sagrados, conforme as disposições que os livros de Numa revelavam, de modo algum podiam ser explicados. Eram indignos.
Alguns dos principais senadores leram algumas das motivações dos ritos. As causas das coisas sagradas nunca deveriam vir ao conhecimento do povo ou do Senado, ou mesmo dos próprios sacerdotes.
O Senado encarava o dilema: condenar a religião conforme entendia seu venerado instituidor ou aceitar suas explicações e minar todos os pináculos da piedade pública.
O Senado, mesmo sem conhecer o conteúdo, considerou suficientes os argumentos do Pretor. Enterrá-los novamente seria um risco para a República, pois poderiam emergir mais tarde. Pior, vista a publicidade dos atos do Senado neste incidente, essa augusta instituição seria vista como hipócrita e mentirosa. Então, o Senado ordenou a queima dos livros o mais rápido possível no Comício. Qualquer quantia que o pretor e os tribunos considerassem um preço justo pelos livros deveria ser paga ao proprietário. Um tanto suspeito livros antigos tão bem preservados aparecerem exatamente na propriedade de um escriba. Indignado pela suspeita infundada, o escriba recusou-se a aceitar dinheiro.
As explicações ou as leis originais de seu grande profeta do passado deveriam ter sido decompostas pelo tempo pelo bem da República. Agora, faziam o sacrilégio de emergirem em um momento delicado para a sociedade.
As chamas crepitaram no Comício à vista do povo, consumindo os rolos de papiro, sacrificados pelos victimarii[7]. A fumaça ascendeu aos céus, carregando consigo os segredos da Roma antiga, ou talvez apenas uma versão da história, dentre as infinitas possibilidades. O Pretor observava ansioso o fogo, buscando decifrar nas chamas o destino da República. Enquanto isso, o escriba, um ligeiro e hábil copista, com um sorriso enigmático, imaginava a se o conhecimento, uma vez libertado, poderia realmente ser aprisionado pelas brasas.
A elite romana suspirou aliviada ao ver as cinzas.
Viver a religião aliada ao Estado na ignorância seria mais benéfico que a verdade.
Graças aos fogos expiatórios dos sacerdotes que deram cabo às sagradas e perniciosas escrituras, Roma poderia dormir sossegada.
Naquele mesmo ano, o Estado consagrou os templos de Vênus Ericina – dedicado ao prazer e à prosperidade – e da Pietas – esse dedicado à devoção pública. Ainda como prova da importância do culto público, este seria o ano em que uma estátua recoberta de ouro – deferência devida aos deuses – foi inaugurada pela primeira vez em homenagem a um mortal: a Mânio Acílio Glábrio.
[1] No ano 181 a.C.
[2] Numa Pompílio teria vivido entre 715 e 672 a.C.
[3] Plínio História Natural 13.27; Agostinho de Hipona Cidade de Deus 7.34; Plutarco Vidas Paralelas 22.2-5; Tito Lívio Ab Urbe Condita Libri 11.29. Entre as fontes perdidas ou fragmentárias estão Valerius Antias, Lúcio Cássio Hemina e Marco Terêncio Varrão.
[4] Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas 2.74.4.
[5] Cícero. De republica 2.28.
[6] Senatus consultum de Bacchanalibus; Tito Lívio Ab Urbe Condita Libri 39.17.
[7] Os victimarii eram os responsáveis pelos sacrifícios. Tal sagrada atividade, vital para o Estado, era desprezada pela aristocracia, dado seu sanguinolento caráter e redolência incômoda.
