Democracia sem heróis

Infeliz a nação que precisa de heróis.

Bertolt Brecht, Vida de Galileu (1938), Cena 12.

Democracia é fundada na descrença em grandes homens.

Friedrich Nietzsche. Vontade de Potência.

Sem fuçar no Google, pode dizer o nome dos chefes de governo da Nova Zelândia, da Suíça e da Suécia? A menos que você tenha algum vínculo com esses três países ou seja um aficionado pela cultura de almanaque, não há motivos de se envergonhar em ignorar os nomes dos líderes dessas sólidas democracias. Embora sejam países relevantes, ricos e até bem presentes no imaginário popular, compartilham a relativa anonimidade quanto aos seus dirigentes no cenário internacional. A razão disso é simples: quanto mais sólida for a democracia de um país, menor será a necessidade de heróis.

Essa arguta observação da ausência de salvadores da pátria em democracias deve-se ao ensaísta Thomas Carlyle (1795–1881) que, por sinal, preferia um regime de heróis à democracia. A democracia seria o desespero de não encontrar heróis. Para o pensador britânico seu conceito de herói incluía a capacidade de se transformar meio às falhas suas e de seu mundo, além de ter uma existência grandiosa que impacta seu mundo. É notável sua influência na noção de Super-homem de Nietzsche e nas versões de massa (e horripilantes) do Duce, do Führer, do Grande Timoneiro e do Generalísimo. A partir desses regimes totalizantes, democracia distingue-se dos governos democráticos de fachada.

Desde as formas mais democráticas da pólis grega e da república romana o estado normal seria um governo colegiado. O tirano ou o ditador eram figuras de exceção, notavelmente convocados para solucionar crises bélicas contra inimigos externos e com limite temporal de atuação. Volta e meia surgiam líderes brilhantes, como Júlio César ou Sula, que se sentiram confortáveis até demais nos assentos do poder. Inicialmente denunciavam as corrupções da república, mas a agenda deles eram notavelmente personalista e com claras intenções perpetuantes. Foi o que Otávio Augusto fez e se tornou o benevolente primeiro imperador de Roma. Seus sucessores, em geral, não foram tão grandiosos e a democracia foi substituída por um governo monocrático, por bem ou por mal.

Nas contemporâneas democracias eleitorais, as figuras quase messiânicas das campanhas minunciosamente forjadas por marqueteiros são apresentadas aos cidadãos como se fossem um concurso de popularidade. Com essa diversão de foco, discussões estruturais ou de políticas públicas sequer chegam ao fórum público. Alguém se lembra quais eram as plataformas dos últimos presidenciáveis a respeito da reforma da Previdência, da política externa ou da política fiscal? Com essa ignorância paradoxalmente alimentada pelo excesso de informação, o rebanho é facilmente manobrável.

Há um gradiente de democracia. As frágeis democracias como a Nicarágua se contrastam com as de países com instituições estabelecidas da Costa Rica, onde não há reeleições para perpetuar caudilhos tampouco forças armadas para dar golpes. Diacronicamente a democracia dos Estados Unidos é mais sólida que a brasileira. Todavia, tanto no caso americano quanto no Brasil há pouca possibilidade de um cidadão comum, sem grande capital de influência vencer as barreiras das máquinas partidárias e galgar um posto eletivo relevante. Já nos exemplos iniciais da Nova Zelândia, Suíça e Suécia, isso seria mais tangível.

Nesse regime com simulacro de democracia, qualquer um que se destaque acima do rebanho ou é exibido, ou nerd, ou porque é filhinho de papai. O protagonismo no país foi substituído por um regime eleitoral que só homologa a vontade dos grandes.

Em um país que foi passivamente “descoberto” acostumou-se ao papel de esperar pelos outros. A independência, a abolição, a república, a CLT, a Constituição de 1988 são apresentadas não como consequências de embates públicos, mas como benevolência dos grandes. Nessa narrativa, os eventos construtores dessas conquistas são tidas como tentativas frustradas: pouco crédito é atribuído aos movimentos nativistas, aos abolicionistas, às resistências indígenas e negras, aos republicanos, aos movimentos trabalhistas e aos militantes da democracia cidadã. Ao invés disso, temos os dom pedros, isabéis, fonsecas, vargas, figueiredos e sarneys colhendo louros indevidos pelas conquistas de um povo.

A maior consequência dessa crença em heróis é a redução do eleitorado em uma massa medíocre. Esse resultado paradoxal de se esperar por Godot abre espaço para gentes medíocres, mas com poder e amplitude de comunicação enormes com capacidade de tanger o rebanho.

Nem todos são manipuláveis. Um eleitorado forte e crítico até pode ser confundido com os “isentões”. Mas enquanto nadam contra a corrente dos medíocres e dos fanáticos sob feitiços de supostos grandes líderes, não são ouvidos, não são contados nos debates e não são considerados nas políticas públicas. Sem debate ou negociação, qualquer freio institucional passa a ser desmantelado pouco a pouco.

Do mesmo modo que direitos são concessões cesaristas nesses regimes eleitorais de heroísmos, os direitos são revogados com a mesma atitude condescendente. Vemos um desmantelamento de institutos sociais arduamente adquiridos e precariamente protegidos pela lei. Por essa razão, a responsabilidade pela ação política em uma democracia não deve e não pode depender de um herói, por mais bem intencionado que seja.

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O Juramento dos Horácios. Jacques-Louis David, 1784.

SAIBA MAIS

Arendt, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense, 2001 [1958].

Carlyle, Thomas. Heroes and Hero-Worship1840

Carlyle, Thomas. Past and Present Past and Present. 1843

Chacon, Vamireh. Deus é brasileiro: o imaginário do messianismo político no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1990.

Ingenieros, José. O homem medíocre. 1913.

Fim das reeleições no Brasil: políticos perpétuos por quê?— O anti-herói político Cincinato que se recusou a ser idealizado.

Democracia e participação no Brasil

2 comentários em “Democracia sem heróis

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