…sem derramamento de sangue não há remissão. Hebreus 9:22
Em um lugar idílico a paz aparente é interrompida pelo derramamento de sangue. A pequena comunidade vira um caos. Um sacrifício precisa ser feito. A morte há de ser violenta.
Violência e sagrado por René Girard
O mitologista e antropólogo filosófico francês René Girard (1923 –2015) propõe a teoria mimética de que todo o desenvolvimento da cultura humana – a religião, as instituições, a organização social – fundamenta-se em mecanismos de contenção da violência (GIRARD, 1990).
Para Girard o mito é falacioso, pois oculta como a violência faz com que surja a sociedade e a cultura.
O ser humano imita modelos para se completar, mas não consegue realizar esse feito. Consequentemente, passa a odiar aquilo que não consegue imitar, nascendo conflitos do desejo mimético, pois o dominado imita o dominador e é uma ameaça à hierarquia estruturada. É como o duplo, o Doppelgänger de Dostoievski. Contrariamente, o desejo mimético leva à perda das diferenças
O bode expiatório a ser sacrificado acalma essa tensão. A vítima leva a culpa por causa da desordem. A vítima vicária mimetiza o que deveria ser destruído, porém uma vítima ideal para assumir o papel do bode expiatório deve ser tanto reconhecida como membro da comunidade para ser responsabilizada quanto ocupar nela um papel marginal para sua destruição não ser ainda mais destrutiva.
O mito reforça esse apaziguamento da violência de origem no desejo mimético, mas para isso deve ser mentiroso: se é percebido que o bode expiatório não é causa da desordem, o mito falha e a tensão volta.
O bode expiatório realiza uma transferência dupla ao ser tanto o gatilho da desordem quanto o meio para alcançar a ordem. Assim, a vítima é deificada como sustento da ordem.
Em momentos de tensão, a comunidade passa a repetir o ritual dando uma explicação mitológica de seus ritos para apaziguar a desordem. Daí nascem a religião institucionalizadas e outras organizações sociais.
A religião institucionalizada age como forma de controle da violência mimética e forma a base da cultura.
O Estado, ou qualquer forma organizada de poder, é mantido por esse mesmo parâmetro. Reis, ditadores, a elite política e os burocratas em geral temem a opinião popular e as massas, pois sabem que quando pararem de satisfazê-las serão sacrificados. Surgem assim as revoltas e revoluções.
A literatura e as artes reproduzem e eternizam, com variações, os mesmos temas do mito primevo do assassinato da vítima sagrada em benefício de uma solução futura.
O método de análise de Girard é original. No entanto, inspira-se em Freud para o mito genético de um assassinato primordial, em Frazer para buscar nos mitos uma violência universalmente ritualizada, em Lévi-Strauss para a perspectiva de que os mitos ocultam relações estruturais profundas e em Eliade a respeito do tempo cíclico do mito e ritual.
E Girard possui também uma leitura singular dos mitos: visa uma leitura analógica, no qual o mito mimetiza a realidade. Assim, sua teoria é liberada de leituras “desmitologizantes” que racionalizam ou tentam explicar os mitos a partir de uma leitura dedutiva, como o estruturalismo, a psicanálise e a deconstrução. Igualmente contrasta com a leitura indutiva do método comparativista de Eliade e outros mitologistas e especialistas das religiões comparadas. Não busca provar a existência de um parâmetro comum, mas fazer uma leitura com base em um tema compartilhado.
As implicações da teoria de Girard tornam explicações utilitárias superficiais. As motivações da agência humana não seriam econômicas ou pulsões psicológicas, mas ligada um sentimento comum e coletivo de reestruturar o mito realizado. Isso explicaria as causas de comportamento autodestrutivo, contra os próprios interesses ou que diminuam a utilidade marginal para seu agente. O martírio é um desses comportamentos.
Em termos práticos, o método de Girard (1996) consiste na busca evidências em narrativas mitológicas dos seguintes tópicos:
- Insatisfação: o tema da desordem;
- Acusação: o destaque de um indivíduo como culpado;
- Condenação: identificação do indivíduo culpado como um bode expiatório ideal;
- O sacrifício: a eliminação do bode expiatório;
- A restauração da ordem: o retorno da paz após o fim violento da vítima.
Com base nesses procedimentos, segue uma análise dos filmes mother! e Apostle.
A análise dos filmes
***Contém spoilers!***
No filme mother! (2017) com roteiro e direção de Darren Aronofsky, os protagonistas são o poeta Ele (Javier Bardem) e a jovem Mãe (Jennifer Lawrence) que passam uma vida idílica no campo até que o estranho casal Homem (Ed Harris) e Mulher (Michelle Pfeiffer) aparecem.
Os incômodos hóspedes causam desconforto para Mãe. Despois de alguns incidentes violentos, Mãe fica grávida e uma multidão de fanáticos pela obra de Ele cercam a casa. O neonato é levado por Ele à multidão. A Mãe incendeia a casa destruindo seus arredores. Ele sai intacto enquanto Mãe está queimada, mas concorda em amá-lo. Em uma cena terrível Ele arranca o coração de Mãe. A casa é transformada e Mãe acorda na cama se perguntando onde está Ele.
Sob roteiro e direção de Gareth Evans, Apostle (2018) retrata um ex-missionário que perdeu a fé, Thomas Richardson, que viaja incógnito para uma comunidade religiosa isolada em uma ilha próximo a Gales. Ambientada em 1905, época do Avivamento de Gales e dos movimentos de revoltas sociais, Thomas tem a missão de resgatar sua irmã, sequestrada pela seita.
Os ex-presidiários Malcolm Howe, Frank e Quinn lideram a seita, com a forte liderança do primeiro. O trio controla a vida da ilha com mão pesada. O grupo descobriu uma deusa que se alimenta de sangue e fertiliza a terra. Aprisionada, alimenta-se do sangue dos adeptos, mas aparentemente está perdendo seu efeito.
A liderança está ciente de que há um infiltrado e temem a intervenção do rei inglês. Após uma caçada, conflitos internos e o embate movido por Thomas Richardson a comunidade é destruída. Sua irmã escapa, mas ele cai ferido sobre a terra. De seu sangue começa a brotar vida vegetal.
Os temas de sacrifício, violência e eterno retorno são comuns aos dois filmes. Eles podem ser vistos como alegorias de temas comuns das grandes religiões, notavelmente o cristianismo.
O eterno retorno, a concepção cíclica da história, com o nascer e morrer, ocorre principalmente entre as religiões dhármicas — hinduísmo, budismo e jainismo — além de suas expressões no ocidente, sobretudo no espiritismo kardecista. Nesse ciclo a destruição e o novo nascimento são elementos cruciais, mas acontecem em eventos violentos.
Como na Akedah, o sacrifício de Isaac por Abraão para atender o pedido de Deus, a morte de uma vítima ideal apazigua a ira e contrabalanceia a justiça divina. Se Søren Kierkegaard interpreta os eventos de Gênesis 22:1-19 como um ato acima da razão, como um teste de fé, a antropologia girardiana interpreta o sacrifício como um parâmetro racional.
Segundo o esquema de Girard, em mother! a Mãe é destacada em um ambiente caótico ocasionado pela chegada dos hóspedes e da multidão. Já no Apostle, há uma caças a bruxas na ilha pelo temor do caos que um espião possa causar à prosperidade da seita. A identificação de Richardson e de a Mãe como os elementos estranhos que incomodam suas congregações requerem alguma forma de apaziguamento. Ambos personagens são conformistas com as práticas de suas comunidades. São bodes expiatórios ideais. Com a morte e renascimento de ambos, a vida retorna. A matriz divina, cenário para ocorrer esses eventos, ainda que questionada no decorrer das histórias, continua incólume.
Em ambos filmes a violência e o sacrifício são concentrados em um curto evento narrativo. Tanto sangue em tão breve momento faz dos filmes um entretenimento não tanto agradável para assistir com seus sobrinhos menores.
A densidade sanguínea acompanha a intensa crítica à religião. Contudo, não há religião indiferente à violência. Enquanto umas apregoam guerra santa ou guerra justa em nome da divindade, diametralmente as igrejas da paz mennonita, quaker e amish — para me ater somente no protestantismo euroamericano — opõem-se drasticamente à violência. Ironicamente, essas religiões passaram por histórico de derramamento de sangue, ou como perpetradores (inquisição, cruzadas, jihad) ou como vítimas (as perseguições contra os dissidentes). Ou ainda, sua narrativa fundadora é centrada em um sacrifício: o akedah, a morte na cruz, a perseguição ao profeta. Desse modo, diferente de outras instituições como a arte, a economia, a política ou a ciência, que podem funcionar com uma neutralidade (ou até tirar benefícios) da violência. A religião demanda uma resposta a ela. E nem toda resposta religiosa será a afirmação da violência. Haverá mesmo a negação dela. Essa presença da violência e religião é uma constante que parece validar a tese de Girard.
Não sei se os roteiristas desses dois filmes possuem familiaridade com a teoria de Girard. Todavia, são amostras paradigmáticas de um mito religioso que oculta a violência e seu papel na manutenção da vida.
SAIBA MAIS
GIRARD, René. Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
GIRARD, René. The Girard Reader: Organizado por James G. Williams. New York: Crossroad, 1996.
GOLSAN, Richard. René Girard and Myth: an Introduction. New York: Routledge, 1993.
VEJA TAMBÉM
O Estruturalismo na Antropologia
Campbell: O herói de mil faces
Deus, inc: a antropologia de um Novo Movimento Religioso
PS: desculpem-me leitores. Saiu na postagem programada primeiro um esboço da versão em esboço. 😛 Eis agora a final.