O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava.
Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada.
Era um fenômeno digno de ver-se.
O entusiasmo veio depois, veio mesmo lentamente, quebrando o enleio dos espíritos. Aristides Lobo. Diário Popular. Rio, 15/11/1889.
Como disse, Lima Barreto “o Brasil não tem povo, tem público”. Uma pequena antologia para ler e rir nervosamente.
Buarque de Holanda: As origens da democracia no Brasil: um mal-entendido
De Benjamin Constant Botelho de Magalhães, honrado por muitos com o título de Fundador de nossa República, sabe-se que nunca votou, senão no último ano da Monarquia. E isso mesmo, porque desejou servir a um amigo de família, o conselheiro Andrade Pinto, que se apresentava candidato à senatoria. Costumava dizer que tinha nojo de nossa política. E um dos seus íntimos refere-nos, sobre sua atitude às vésperas de inaugurar-se o novo regime, que naquele tempo, decerto, nem sequer lia os jornais, tal a aversão que lhe inspirava nossa coisa pública. E assim prossegue: “Era-lhe
indiferente que governasse Pedro ou Martinho, liberal ou conservador. Todos, na opinião dele, não prestavam para nada. E eu muitas vezes estranhava essa indiferença e o pouco caso de Benjamin pelas nossas coisas políticas, que em geral são tão favoritas de todo brasileiro de alguma educação; e procurava explicar o fato estranho, dizendo comigo mesmo que ele era um espírito tão superior, que não se ocupava com essas coisas pequeninas, e nem tempo tinha, porque pouco lhe sobrava para seus estudos sérios de matemáticas a que sempre se dedicou com ardor e paixão” (Raízes do Brasil, 1936 p.159-160)
Machado de Assis. A tabuleta da confeitaria do Custódio
— (…) Contentemo-nos do que sabemos. Lá os meus pés andam por si. Há ali coisas petrificadas e pessoas imortais, como aquele Custódio da confeitaria, lembra-se?
— Lembra-me, a Confeitaria do Império.
— Há quarenta anos que a estabeleceu; era ainda no tempo em que os carros pagavam imposto de passagem. Pois o diabo está velho, mas não acaba; ainda me há de enterrar. Parece rapaz; aparece-me lá todas as semanas.
Tabuleta Velha. Capítulo 49
Toda gente voltou da ilha com o baile na cabeça, muita gente sonhou com ele, alguma dormiu mal ou nada. Aires foi dos que acordaram tarde; eram onze horas. (…) Fumou, leu, até que resolveu ir à rua do Ouvidor. Como chegasse à vidraça de uma das janelas da frente, viu à porta da confeitaria uma figura inesperada, o velho Custódio, cheio de melancolia. Era tão novo o espetáculo que ali se deixou estar por alguns instantes; foi então que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com ele entre as cortinas, e enquanto Aires voltava para dentro, Custódio atravessou a rua e entrou-lhe em casa.
– Vim para contá-lo a V. Excia; é a tabuleta.
– Que tabuleta?
– Queira V. Excia ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o favor de ir à janela.
– Não vejo nada.
– Justamente, é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar a tabuleta que afinal consenti, e fi-la tirar por dois empregados. A vizinhança veio para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. Já tinha falado a um pintor da rua da Assembleia. (…) Ontem à tarde lá foi um caixeiro, e sabe V. Excia a que me mandou dizer o pintor? Que a tábua estava velha, e precisa outra; a madeira não aguenta a tinta. Lá fui às carreiras. Não pude convencê-lo de pintar na mesma madeira; mostrou-me que estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via. Teimei que pintasse assim mesmo, respondeu-me que era artista e não faria obra que se estragasse logo.
— Pois reforme tudo. Pintura nova em madeira velha não vale nada. Agora verá que dura pelo resto da nossa vida.
— A outra também durava; bastava só avivar as letras.
Era tarde, a ordem fora expedida, a madeira devia estar comprada, serrada e pregada, pintado o fundo para então se desenhar e pintar o título. (…) Quaisquer que fossem as cores, eram tintas novas, tábuas novas, uma reforma que ele, mais por economia que por afeição, não quisera fazer; mas a afeição valia muito. Agora que ia trocar de tabuleta sentia perder algo do corpo, — coisa que outros do mesmo ou diverso ramo de negócio não compreenderiam, tal gosto acham em renovar as caras e fazer crescer com elas a nomeada. São naturezas. Aires ia pensando em escrever uma Filosofia das Tabuletas, na qual poria tais e outras observações, mas nunca deu começo à obra.
— V. Exª há de me perdoar o incômodo que lhe trouxe, vindo contar-lhe isto, mas V. Exª é sempre tão bom comigo, fala-me com tanta amizade, que eu me atrevi… Perdoa-me, sim?
— Sim, homem de Deus.
— Conquanto V. Exª aprove a reforma da tabuleta, sentirá comigo a separação da outra, a minha amiga velha, que nunca me deixou, que eu, nas noites de luminárias, por S. Sebastião e outras, fazia aparecer aos olhos da gente. V. Exª, quando se aposentou, veio
achá-la no mesmo lugar em que a deixou por ocasião de ser nomeado. E tive alma para me separar dela!
— Está bom, lá vai; agora é receber a nova, e verá como daqui a pouco são amigos.
Custódio saiu recuando, como era o seu costume, e desceu trôpego as escadas. Diante da confeitaria deteve-se um instante, para ver o lugar onde estivera a tabuleta velha. Deveras, tinha saudades.
Pare no d. Capítulo 62
A pessoa era o Custódio e foi para casa, mas o velho diplomata, sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que viesse. Custódio saiu, correu; subiu e entrou assombrado.
— Que é isso, Sr. Custódio? disse-lhe Aires. O senhor anda a fazer revoluções?
— Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Exª soubesse…
— Se soubesse o quê?
Custódio explicou-se. Vá, resumamos a explicação.
Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à Rua da Assembleia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, — a palavra Confeitaria e a letra d. A letra o e a palavra Império estavam só
debuxadas a giz. Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a forma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.
Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso sustar a pintura.
Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: “Pare no D.” Com efeito, não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder o
princípio, que podia valer. Sempre haveria palavra que ocupasse o lugar das letras restantes. “Pare no D.”
Quando o portador voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.
— Você viu-a pronta?
— Vi, patrão.
— Tinha escrito o nome antigo?
— Tinha, sim, senhor: “Confeitaria do Império.”
Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembleia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita; alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quiseram rasgá-la; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais eficaz cobri-la. Levantada a cortina, Custódio leu: “Confeitaria do Império.” Era o nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a tabuleta, ainda que fosse em beco escuro, quanto mais na Rua do Catete…
— O senhor vai despintar tudo isto, disse ele.
— Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despesa. Depois, pinto outra coisa.
— Mas que perde o senhor em substituir a última palavra por outra? A primeira pode ficar, e mesmo o d… Não leu o meu bilhete?
— Chegou tarde.
— E por que pintou, depois de tão graves acontecimentos?
— O senhor tinha pressa, e eu acordei às cinco e meia para servi-lo. Quando me deram as notícias, a tabuleta estava pronta. Não me disse que queria pendurá-la domingo? Tive de pôr muito secante na tinta, e além da tinta, gastei tempo e trabalho.
Custódio quis repudiar a obra, mas o pintor ameaçou de pôr o número da confeitaria e o nome do dono na tabuleta, e expô-la assim, para que os revolucionários lhe fossem quebrar as vidraças do Catete. Não teve remédio senão capitular. Que esperasse: ia pensar na substituição; em todo caso, pedia algum abate no preço. Alcançou a promessa do abate e voltou a casa. Em caminho, pensou no que perdia mudando de título, — uma casa tão conhecida, desde anos e anos! Diabos levassem a revolução! Que nome lhe poria agora?
Nisso lembrou-lhe o vizinho Aires e correu a ouvi-lo
Tabuleta nova. Capítulo 63
Referi-lo o que lá fica atrás, Custódio confessou tudo o que perdia no título e na despesa, o mal que lhe trazia a conservação do nome da casa, a impossibilidade de achar outro, um abismo, um suma. Não sabia que buscasse; faltava-lhe invenção e paz de espírito. Se pudesse, liquidava a confeitaria. E afinal que tinha ele com política? Era um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguesado, respeitado, e principalmente respeitador da ordem pública…
— Mas o que é que há? perguntou Aires.
— A república está proclamada.
— Já há governo?
— Penso que já; mas diga-me V. Exª: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto… Uma fatalidade! Venha em meu socorro.
Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. — “Confeitaria do Império”, a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Exª crê que, se ficar “Império”, venham quebrar-me as vidraças?
— Isso não sei.
— Realmente, não há motivo, é o nome da casa, nome de trinta anos, ninguém a conhece de outro modo.
— Mas pode pôr “Confeitaria da República”…
— Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro.
— Tem razão… Sente-se.
— Estou bem.
— Sente-se e fume um charuto.
Custódio recusou o charuto, não fumava. Aceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a atenção, se não fosse o atordoamento do espírito. Continuou a implorar o socorro do vizinho. S. Exª, com a grande inteligência que Deus lhe dera, podia salvá-lo. Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses, — “Confeitaria do Governo.”
— Tanto serve para um regímen como para outro.
— Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida… Há porém, uma razão contra. V. Exª sabe que nenhum governo deixa de ter oposição. As oposições, quando descerem à rua, podem implicar comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem-me a tabuleta; entretanto, o que eu procuro é o respeito de todos.
Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o vizinho não queria barulhos à porta, nem malquerenças gratuitas, nem ódios de quem quer que fosse; mas, não o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando em quando, se não achasse um título definitivo, popular e imparcial. Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguém lhe compraria uma tabuleta condenada. Já era muito ter o nome e o título no Almanaque de Laemmert, onde podia lê-lo algum abelhudo e ir com outros, puni-lo do que estava impresso desde o princípio do ano.
— Isso não, interrompeu Aires; o senhor não há de recolher a edição de um almanaque.
E depois de alguns instantes:
— Olhe, dou-lhe uma ideia. que pode ser aproveitada, e, se não a achar boa, tenho outra à mão; e será a última. Mas eu creio que qualquer delas serve. Deixe a tabuleta pintada como está, e à direita, na ponta, por baixo do título, mande escrever estas palavras que explicam o título: “Fundada em 1860.” Não foi em 1860 que abriu a casa?
— Foi, respondeu Custódio.
— Pois…
Custódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não; atônito, a boca entreaberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão nem para as paredes ou móveis, mas para o ar.
Como Aires insistisse, ele acordou a confessou que a ideia era boa. Realmente, mantinha o título e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. Entretanto, a outra ideia podia ser igual ou melhor, e quisera comparar as duas.
— A outra ideia não tem a vantagem de pôr a data à fundação da casa, tem só a de definir o título, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regímen. Deixe-lhe estar a palavra império e acrescente-lhe embaixo, ao centro, estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim, concluiu Aires, sentando-se à secretária, e escrevendo em uma tira de papel o que dizia.
Custódio leu, releu e achou que a ideia era útil; sim, não lhe parecia má. Só lhe viu um defeito; sendo as letras de baixo menores; podiam não ser lidas tão depressa e claramente com as de cima, e estas é que se meteriam pelos olhos ao que passasse. Daí a que algum político ou sequer inimigo pessoal não entendesse logo, e… A primeira ideia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a data da fundação, fazia timbre em ser antigo. Quem sabe se não era pior que nada?
— Tudo é pior que nada.
— Procuremos.
Aires achou outro título, o nome da rua, “Confeitaria do Catete.” Sem advertir que, havendo outra confeitaria na mesma rua, era atribuir exclusivamente à do Custódio a designação local. Quando o vizinho lhe fez tal ponderação, Aires achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem; mas logo depois descobriu que o que fez falar o Custodio foi a ideia de que esse título ficava comum às duas casas. Muita gente não atinaria com o título escrito e compraria na primeira que lhe ficasse à mão, de maneira que só ele faria as despesas das pinturas e ainda por cima perdia a freguesia. Ao perceber isto, Aires não admirou menos a sagacidade de um homem que em meio de tantas tribulações; contava os maus frutos de um equívoco. Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despesa feita e não pôr nada, a não ser que preferisse o seu próprio nome: “Confeitaria do Custódio”. Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome; o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração história, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois regímens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara; menos ainda a vida do proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse alvitre? Gastava alguma coisa com a troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império, mas as revoluções trazem sempre despesas.
— Sim vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo.
Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi à janela para vê-lo atravessar a rua. Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado um ilustre particular que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu desespero.
Artur Azevedo: Plebiscito
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário-belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente, para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O Senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse não perguntava.
O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!…
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário, acudiu o Senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: “Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho”.
O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário…
A menina toma a palavra:
— Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa Dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio; — é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!…
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua, num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito…
E olha para todos os lados, a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!…
VEJA TAMBÉM
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005