Passei muitos dias trabalhando com cientistas para sair depois à noite para me encontrar com colegas das humanidades. E, convivendo nesses dois grupos, estive pensando no problema que, intimamente, chamava muito antes de confiá-lo ao papel com o nome de “as duas culturas”.
São dois grupos polarizados antiteticamente: os intelectuais das humanidades em um polo e, no outro, os cientistas. Entre os dois polos, um abismo de incompreensão mútua. Às vezes (especialmente entre os jovens), há ainda hostilidade e antipatia, mas acima de tudo, falta de compreensão recíproca.
Os cientistas acreditam que os intelectuais das humanidades são completamente desprovidos de visão antecipatória, que eles vivem singularmente inconscientes de seus irmãos, homens, que estão em um profundo sentido anti-intelectual, ansiosos por reduzir a arte e o pensamento a um momento existencial.
Quando não cientistas ouvem sobre cientistas que nunca leram uma obra importante de literatura, eles dão uma risadinha entre zombaria e compaixão. Eles os descartam como especialistas ignorantes.
E, no entanto, o que lhes perguntei é mais ou menos o equivalente científico de “Você já leu alguma peça de Shakespeare?”
Algumas vezes estive presente em reuniões de pessoas que, segundo os padrões da cultura tradicional, são altamente educadas e que têm expressado, com considerável entusiasmo, sua incredulidade pelo analfabetismo dos cientistas.
Uma ou duas vezes fui provocado e perguntei aos não cientistas quantos deles poderiam descrever a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta foi glacial: também foi negativa. No entanto, o que lhes perguntei é mais ou menos o equivalente científico de: Você já leu uma obra de Shakespeare?
Acredito agora que, se tivesse feito uma pergunta ainda mais simples como: o que você quer dizer com massa, ou aceleração, que é o equivalente científico de dizer: você consegue ler? — não mais que um entre dos dez altamente qualificados teria sentido que eu estava falando na mesma língua. Assim, o grande edifício da física moderna cresce, mas a maioria das pessoas mais inteligentes do mundo ocidental tem tanto discernimento quanto seus ancestrais neolíticos.
C.P. Snow. As duas culturas.
Charles Percy Snow (1905–1980) era um físico nuclear, funcionário público e romancista inglês. Em 1959, por ocasião de uma palestra em Cambridge, postulou sua tese de que havia um abismo separando os mundos dos cientistas e dos intelectuais das humanidades. Mais tarde, publicaria a palestra em um artigo e a expandiria em um livro, publicado em 1959 e revisado em 1963. Argumentava que no Reino Unido havia um antagonismo entre as ciências e as humanidades, havendo uma supervalorização dessa última, em detrimento a uma básica formação científica.
A crítica de C. P. Snow tem por foco o cenário britânico. No Reino Unido a educação generalista nas humanidades tem bastante prestígio entre as classes altas que frequentam Oxford e Cambridge enquanto as classes médias e trabalhadoras tendem a buscar uma formação especialista nas “novas” universidades. O autor contrasta a formação multidisciplinar da Alemanha e dos Estados Unidos e alertava que os britânicos estariam em desvantagem política e econômica caso continuassem nessa divisão.
Pelos próximos três anos C.P. Snow e o crítico literário Frank Raymond Leavis (1895–1978) debateram sobre o assunto. F. R. Leavis — crítico que contribuiu na inserção de T. S. Eliot, James Joyce, D. H. Lawrence, Joseph Conrad e Ezra Pound no cânone literário inglês – certa forma defendia uma compreensão holística da sociedade. Todavia, primava pela formação da elite cultural e política deveria ser sobretudo humanística. Para Leavis, Snow tentava dar primazia ao uso econômico das ciências e das tecnologias, em prejuízo dos valores transmitidos pelas humanidades que seriam centrais para a civilização ocidental. Apesar do caráter elitista das críticas (e desonesto, Leavis partia para o ataque ad hominem contra Snow e ridicularizava os especialistas em ciências e tecnologia, não os considerando educados o suficiente), como se verá, ainda se mantém necessário ter influenciadores de políticas públicas orientados por uma formação que valorize o ser humano. Em rebate aos argumentos de Leavis, Snow passou a defender uma “terceira cultura” na qual integrava as humanidades com a ciência – proposta que continua válida.
Na época, o mundo experimentava a valorização da Science, Technology, Engineering and Mathematics (STEM). Nos trinta anos do pós-guerra, o mundo ocidental viveu a revolução tecnológica do jato, do plástico, da corrida aeroespacial, das telecomunicações e deu um grande salto nas inovações informáticas. A urgência em conseguir um desenvolvimento rápido no qual a população consumidora conseguisse absorver essas inovações traduziu-se nas políticas do sistema de Bretton Woods e do Estado de Bem-Estar Social. Além disso, havia a paranoia da Guerra Fria, com cada lado tentando convencer sobre as benesses sociais e econômicas, bem como os avanços tecnológicos.
Quem mais sentiu os efeitos colaterais dessa busca pela eficiência, desenvolvimento e tecnologia foram os países do Sul Global. Na América Latina, África e Ásia surgiram novas instituições de ensino e pesquisa, muitas delas com apoio financeiro e intelectual das nações desenvolvidas, que focavam na especialização. Tipicamente, nesses países os currículos são fechados, com pouca possibilidade de eletivas para os alunos, sem aspectos multi, trans ou interdisciplinares. Consequentemente, formou-se uma elite tecnocrata com pouca sensibilidade humanística, enquanto o “pessoal das humanas” – com exceção dos técnicos jurídicos e econômicos, cada vez mais “esquematizados ou matematizados” e desprovidos das humanidades – passaram a ter menor importância na escala social.
No Brasil, as antigas faculdades de filosofia, ciências e letras foram incorporadas em universidades com fluxo curricular rígidos ou transformadas em cursos utilitários de licenciaturas. Hoje, a ignorância especializada até jocosamente é valorizada: “sou de letras, não de número”, “em humanas tudo é subjetivo, relativo, sou de exatas, gosto de coisas objetivas”. Como consequência, no Brasil e muitas nações do Sul Global vivem-se o mesmo abismo, mas com a inversão de poderes: uma elite sem formação humana sobrepondo-se a uma massa de intelectuais populares sem mínima compreensão das ciências naturais e exatas.
As ramificações e detalhes da tese de Snow e das críticas de Leavis são hoje secundários. Entretanto, a virada informacional atualmente demanda uma formação mais em habilidades que em substância. Uma educação interdisciplinar nas artes liberais deveria preparar para avaliar o mundo de modo crítico, ético e sensível, sem desconsiderar os recursos de comunicação efetiva, da capacidade analítica lógico-quantitativa e uma visão compreensiva dos fenômenos físicos e biológicos. Por falar nisso, Snow indulgentemente educava seus interlocutores literatos que a Primeira Lei da Termodinâmica significava que “você não consegue ganhar” e a Segunda Lei como “você não consegue empatar, exceto em um dia frio”. Ou seja, não há como converter toda a energia térmica em trabalho a menos que esteja em 0 Kelvin.
SAIBA MAIS
LEAVIS, F.R. “Two Cultures? The Significance of Lord Snow.” In Nor Shall my Sword: Discourses on Pluralism, Compassion and Social Hope. Londres: Chatto and Windus, 1972.
MOTHE, J.S.de la. C.P.Snow and the Struggle for Modernity. Austin: University of Texas Press, 1992.
SNOW, C.P. The Two Cultures: and A Second Look: An Expanded Version of The Two Cultures and the Scientific Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 1964. Em português há As duas culturas e um segundo olhar: uma versão ampliada das Duas Culturas e a Revolução Científica. Tradução de Renato Rezende Neto e Geraldo Gérson de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.
Olá Leonardo! Achei seu texto excelente, você escreve um material muito rico e de leitura cativante.
Parabéns pelo blog para tu e sua esposa que lhe auxilia.
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Olá Drica,
Obrigado pelas gentis palavras. Fico contente que nossos rabiscos tenha deixado algum impacto positivos aos nossos leitores.
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Olá!
Meu professor de Energia recomendou que pesquisássemos sobre “As duas Culturas de Charles Percy Show”, e eu caí aqui rs. Ele sempre faz uma ponte entre humanidades e ciências, algo como filosofia da ciência, e eu acho muito instigante, uma vez que já cursei Letras, e hoje estou na área de Ciência e Tecnologia. Não é trivial que haja essa ponte por parte da sociedade em geral, mas eu, definitivamente, acho que ela devia ser tão natural quanto uma criança tem contato com números mas também com palavras. Ótimo texto!
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Obrigado, Ana.
Também creio que os raciocínios matemáticos e comunicativos devam ser integrados na formação como humanos.
Infelizmente o preconceito de que humanas não se combina com exatas causa muito dano.
Obrigado pelo comentário.
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Precisava de uma visão rápida sobre isso e felizmente caí aqui. Agradecida.
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Fico feliz por isso. 😀
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