Duas loterias literárias

Élio Lamprídio, na Vida de Antonino Heliogábalo, refere que este imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados, de maneira que se recebiam dez libras de ouro, e outro, dez moscas, dez leirões, dez ursos. — J.L. Borges

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Cerca de 300 pessoas — toda a população da cidadezinha — se reúnem na praça central onde observam o ritual todo dia 27 de junho. É uma loteria na qual os participantes tentam a sorte tirando pedaços de papel de uma caixa.  O prêmio é surpreendente.

Tão surpreendente prêmio que leitores irados repudiaram a revista The New Yorker quando em 1948 esse conto foi publicado. Culpa do realismo da autora Shirley Jackson (1916–1965) ou será culpa da inépcia dos leitores em distinguir entre fato e ficção? Cara ou coroa…

Outra loteria é a de Babilônia. O conto de Jorge Luís Borges, inicialmente publicado na revista literária Sur (1941) e depois adicionada à antologia Ficciones (1944) narra como a vida era determinada por uma loteria na imaginária Babilônia. Originalmente era uma loteria ordinária, com prêmios cobiçados pelos concorrentes. Depois o concurso mudou. Passaram distribuir punições e, por fim, a guiar o destino dos habitantes.

A loteria é bíblica. Moisés loteou Canaã com uma loteria (Números 24:52). Para aplacar a ira do mar, os marinheiros jogaram o uni-duni-tê e lá Jonas foi se perder (Jonas 1:7). O misterioso oráculo urim e tumim decidia a sorte dos israelitas. Por fim, em Massada a loteria decidiu a ordem da morte de seus ocupantes. (Flávio Josefo, A Guerra dos Judeus VII). Em um derradeiro gesto de humilhação, os soldados romanos disputaram na sorte o manto de Jesus (Mateus 27:35); razão que, por analogia, anabatistas, puritanos, pietistas, metodistas e evangélicos holiness abominam qualquer forma de jogos.

A loteria continua ambígua. Como nos antigos oráculos ou na aposta de Pascal, a álea no I Ching e nos búzios parecem determinar a vida. Mas há quem viva como a sorte, ora levando vantagem, ora sendo vítima da manipulação dos espertalhões. Acerca dessa postura Cícero (De Divinatione II, [XLI] 85) argumenta: “Afinal, o que é a sorte? É quase o mesmo que saltitar, jogar o astrágalo e jogar dados, em que importam a irreflexão e o acaso, mas não a razão e o ato da vontade. Esse assunto todo foi determinado por ardis tendo em vista o lucro, a superstição ou o erro”. Sagrada ou secular, a loteria mascararia a falta de equidade — ou ser ainda mais equânime, como nas democracias organizadas como demarquias.

Em ambos contos as pessoas concordam com o sistema da loteria. Afinal, é justo deixar ao azo nossos destinos. Na loteria de Shirley as pessoas agem com uma normalidade que remete à banalidade do mal. Já em Babilônia, as pessoas aceitam viver sob o julgo do “sistema” mantido pela misteriosa Companhia. Como os leitores irados do conto de Jackson, nesse mundo contemporâneo onde impera o “sistema” acho difícil distinguir entre realidade e fantasia.

Vão aqui excertos dos contos, sem spoilers.

A manhã de 27 de junho estava límpida e ensolarada, com o calor refrescante de um dia em pleno verão; as flores desabrochavam em profusão, e a grama era de um verde vivo. Os habitantes do vilarejo começaram a se reunir na praça, entre os correios e o banco, por volta de dez da manhã; em algumas cidades, havia tantas pessoas que a loteria durava dois dias e tinha que começar em 26 de junho. Neste vilarejo, porém, no qual havia apenas cerca de 300 pessoas, a loteria inteira durava menos de duas horas, por isso, podia começar às dez da manhã e ainda acabar a tempo de permitir que seus habitantes voltassem a casa para fazer a refeição do meio-dia.

Sem dúvida, as crianças foram as primeiras a se reunir. Recentemente, a escola fechara para o verão, e a sensação de liberdade instalara-se inquietamente na maioria; elas tendiam a se juntar em silêncio por um tempo antes que irrompessem numa brincadeira barulhenta. E a conversa ainda era sobre a turma e a professora, os livros e os castigos. Bobby Martin já enchera os bolsos com pedras; os outros garotos logo seguiram seu exemplo e selecionaram as mais lisas e redondas; Bobby, Harry Jones e Dickie Delacroix — os habitantes pronunciavam “Dellacroy” — finalmente fizeram uma grande pilha de pedras em um canto da praça e a protegeram dos ataques-surpresa dos outros garotos. As garotas se mantiveram a distância e conversavam entre si, olhando por cima dos ombros para os meninos; crianças muito pequenas rolavam na terra ou seguravam as mãos de irmãos ou irmãs mais velhos.

Pouco depois, os homens começaram a se reunir. Observando os pró- prios filhos, falavam sobre plantio e chuva, tratores e impostos. Eles ficavam de pé, juntos, longe da pilha de pedras no canto, suas piadas eram silenciosas, e sorriam em vez de dar risadas. As mulheres vestiam roupas de casa e suéteres desbotados, e chegaram pouco depois dos homens. Elas se cumprimentavam e fofocavam conforme se juntavam aos maridos. Logo, as mulheres, de pé, ao lado dos homens, começaram a chamar seus filhos, e eles vinham, relutantes, tendo que ser chamados quatro ou cinco vezes. Bobby Martin abaixou-se sob a mão da mãe que o apertava e correu, às gargalhadas, de volta para a pilha de pedras. O pai ergueu a voz abruptamente, e Bobby se aproximou rápido, assumindo seu lugar entre o pai e o irmão mais velho.

A loteria era conduzida — assim como as quadrilhas, o clube juvenil, o programa do Halloween — pelo Sr. Summers, que tinha tempo e energia para dedicar às atividades cívicas. Era um homem jovial, de rosto redondo, administrava o negócio de carvão, e as pessoas lamentavam por ele, pois não tinha filhos, e a esposa era uma megera. Quando chegou à praça, carregando a caixa de madeira preta, ouviu-se um murmúrio de conversa entre os habitantes, e ele acenou e falou: “Um pouco atrasado hoje, amigos”. O carteiro, o Sr. Graves, o acompanhava e trazia um tamborete com três pernas. O banquinho foi colocado no centro da praça e o Sr. Summers pôs a caixa preta em cima dele. Os habitantes mantinham distância, deixando um espaço entre eles e o tamborete. E quando o Sr. Summers falou: “Algum de vocês, amigos, quer me dar uma ajuda?”; houve uma hesitação antes de dois homens, o Sr. Martin e seu filho mais velho, Baxter, darem um passo a frente e segurarem a caixa equilibrada no banquinho enquanto o Sr. Summers remexia os papéis dentro dela.

Tradução completa de Ana Resende foi publicada na Revista Literária em Tradução, nº 9 (set/2014). O texto também está disponível no blog Entrecontos. O original em inglês publicado pela The New Yorker, no dia June 26, 1948 p .25 também está disponível online. A Enclyclopaedia Britannica fez uma curta-metragem do conto que vale a pena assistir.

Quanto ao conto de Borges:

Como todos os homens da Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança foi-me fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heráclides Pôntico conta com admiração que Pitágoras se lembrava de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda um outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Devo essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas desconhecem ou que nelas trabalha de forma imperfeita e secreta: a loteria.

Leia o texto completo em espanhol ou em português.

 

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