Scheper-Hughes: morte sem lamento

brlasspring2013-nancyanddalenaonthealtodocruzeiro-750pSCHEPER-HUGHES, Nancy. Death Without Weeping: The Violence of Everyday Life in Brazil. Berkley: University of California Press, 1992.

Uma das obras mais relevantes acerca do Brasil, ainda permanece sem tradução ou edição brasileira. Seu título provável seria “Morte sem lamento: a violência da vida cotidiana no Brasil”, escrita pela antropóloga Nancy Scheper-Hughes (n1944).

Quando nos anos 1960 a jovem Nancy chegou ao Alto do Cruzeiro, uma comunidade pobre periférica em Timbaúba, a agente de saúde voluntária do Peace Corps encontrou pessoas em condições assustadoras. Era o que Eduardo Galeano chamava de campo de concentração para 30 milhões de pessoas. A miséria e a condição nutricional de um habitante do Nordeste na época não diferenciam muito dos campos de extermínio nazistas. Com poucos apetrechos — reporta carregar um sabonete, tesouras, antissépticos, curativos adesivos, uma seringa, ampolas de vacina, várias agulhas e uma pedra para afilar agulhas — notou que meio a pobreza, a mortalidade infantil era alta. E o que mais chocou: aparentemente havia um conformismo por parte das mães que perdiam os bebês.

‘Por que os sinos batem com tanta frequência?’ — Perguntei a Nailza de Arruda logo após me mudar para um canto de seu pequeno casebre de paredes de taipa próximo ao topo do Alto do Cruzeiro. Era um verão quente e escaldante de 1964, nos meses seguintes ao golpe militar e, exceto pelos sinos enferrujados tinindo na Igreja de Nossa Senhora das Dores, um misterioso silêncio tomou o lugar. Por trás desse silêncio, entretanto, havia caos e pânico.

‘Não é nada’, respondeu Nailza, ‘só outro anjinho que foi para os céus’. Nailza mandou mais que sua devida cota de anjinhos para os céus e, às vezes à noite, eu podia ouvi-la envolver-se em uma abafada mas apaixonada conversa com um deles: a menina de dois anos, Joana. A foto de Joana, tirada com seus olhos abertos e arrumada em seu caixãozinho de papelão, estava pendurada na parede ao lado do retrato de Nailza e Zé Antônio tirado no dia em que o casal fugira anos antes…

Nailza mal podia lembrar os nomes das outras crianças e bebês que vieram e foram uma rápida sucessão. Alguns morrem sem nome e foram apressadamente batizados em seus caixões. Poucos viveram mais que um mês ou dois. Somente Joana, batizada na igreja no final do primeiro ano e colocada sob a proteção de uma santa poderosa, Joana d’Arc, tinha expectativas de vida. E Nailza perigosamente deixou-se amar aquela garotinha. Quando falando com a menina morta, a voz de Nailza variava desde chorosa até irritada e recriminante: ‘por que você me deixou? Sua santa protetora foi tão mesquinha que não podia me deixar uma só criança nessa Terra?’

Mais tarde, nos anos 1980, Nancy Scheper-Hughes voltou ao Alto do Cruzeiro (apresenta o município como Bom Jesus da Mata na etnografia) para fazer trabalho de campo como antropóloga. Em seu estudo concluiu que o conceito de “amor materno” era culturalmente moldado. A noção de amor materno das classes de melhores condições de vida não correspondia ao afeto das mães que perdiam seus filhos na infância.

A tese, um tanto controversa, merece algumas elaborações. Nancy Scheper-Hughes admite a ligação afetiva biológica entre mães e filhos, mas demonstra que essa ligação é mediada pela cultura. No caso dos pobres da Zona da Mata pernambucana, a insegurança da vida canalizava os sentimentos para a aceitação ‘natural’ da morte infantil.

Scheper-Hughes aponta o papel de várias instituições para reforçar essa aceitação. O catolicismo popular considerava que as crianças mortas na infância se tornavam anjinhos e iriam para junto dos santos. Batismos de emergência ou no caixão chancelavam essa crença. Já o Estado, na forma da prefeitura, distribuía os caixões e providenciava o enterro. A insegurança alimentar fazia que as mães dependessem do leite em pó como principal alimento das crianças, desmamando cedo, pois temiam perder suas forças para cuidarem de si e de outros membros da família.

Scheper-Hughes leciona antropologia médica na Universidade da Califórnia, Berkeley e fez recorrentes visitas de campo ao local de sua etnografia. Acompanhou a queda da mortalidade infantil entre a população estudada e, com compromisso ético em suas pesquisas, Scheper-Hughes aplicou seu conhecimento na melhoria de vida dessa comunidade. Subsidiou provas em um processo contra grupos de extermínio e denunciou o tráfico de órgãos.

Como Euclides da Cunha em Os Sertões, Scheper-Hughes apresenta um dos brasis incômodos e merece seu lugar nos cânones da biblioteca brasiliana. Todavia, não glamoriza a miséria como fazem cineastas sedentos para vender um Brasil exótico. O lado humano da miséria representado por Scheper-Hughes provoca empatia e senso de responsabilidade. É uma pena que, em tempos quando essa abjeta pobreza arrisca a voltar no país, a obra ainda continua ignorada e não publicada por essas paragens.

SAIBA MAIS

No more angel babies on the Alto do Cruzeiro

Celebrating barefoot Anthropology: Nancy Scheper-Hughes

 

 

 

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