Cícero denuncia Catilina

O que fazer quando um manipulador sanguinário conspira para dar um golpe, arrebatando o poder da República e te matar? Sem armas ou exércitos o orador romano Marcos Túlio Cícero (106–43 a.C) empregou seu mais poderoso recurso: as palavras.

Nos meados do século I Roma possuía um vasto território na bacia do Mediterrâneo e estava em franca expansão. Todavia, a tensão interna resultante de uma sociedade complexamente estratificada fragilizava a República. De um lado havia generais sedentos de poder, de outro o descontentamento social rampante.

Na época, a sociedade romana estava dividida de tal forma que as vestimentas, privilégios e protocolos tornavam patentes as diferenças. No topo ficavam os patrícios, que reuniam os senatores — as antigas famílias fundadoras de Roma que constituíam a classe senatorial, cujos ofícios restringiam-se à guerra e à agricultura — e equites — a classe enriquecida com o comércio. Quando os membros da classe econômica galgavam postos na magistratura ou eram admitidas ao senado, tornavam-se senatores. Depois vinham a plebe, libertos, latinos, peregrinos e escravos. Quem não tinha dinheiro ou poder devia viver a relação de patronato-cliente: buscar os favores de alguém rico e poderoso, prestando homenagem diárias no salutatio, cantando poemas e defendendo os interesses de seu protetor.

Havia muita gente insatisfeita. Se anteriormente os irmãos Gracos e Caio Mário tentaram melhorar a República procurando um balanço de poder, o oportunista Lúcio Sérgio Catilina (108—62 a.C.) procurou ganhar proveito com o vácuo político deixado por Sulla (138—81 a.C.) .

Catilina, um patrício empobrecido, armou-se com uma multidão de descontentes e prometeu a remissão das dívidas e uma reforma agrária. Lançou-se candidato a alguns cargos magistrais, mas perdeu a eleição ao consulado. Pessoa enigmática, causou até mesmo admiração e ódio em Cícero. Persuasivo, conseguiu vencer um processo por ter se envolvido com uma vestal, Fábia, cunhada de Cícero.

Em 8 de novembro de 63 a.C. o cônsul Cícero soube via sua rede de informantes da rebelião planejada por Catilina, que pretendia usar veteranos para matar senadores, Cícero e outro cônsul. Apesar dos rumores, a classe política nada fazia.

Cícero convocou o senado ao templo de Júpiter Stator e fez a primeira de quatro orações. A primeira parte do discurso causou comoção e ainda hoje é exemplo da retórica romana.

Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?
Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós a tua loucura?
Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? A que extremo precipitar-se-há tua audácia desfreada?
Nihil ne te nocturnum praesidium Palati, nihil urbis vigiliae, nihil timor populi, nihil concursus bonorum omnium, nihil hic munitissimus habendi senatus locus, nihil horum ora voltusque moverunt? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem o temor do povo,
nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem a expressão do voto destas pessoas, nada disso conseguiu perturbar-te?
Patere tua consilia non sentis, constrictam iam horum omnium scientia teneri coniurationem tuam non vides? Não te percebestes que já descobriram os teus planos?
Quid proxima, quid superiore nocte egeris, ubi fueris, quos convocaveris, quid consilii ceperis, quem nostrum ignorare arbitraris? Quem, dentre nós, pensas tu, que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste?
O tempora, o mores! Oh tempos, oh costumes!

Catilina acabou fugindo. Diante da ameaça de Catilina usar-se dos inimigos gauleses para invadir Roma, controvertidamente o senado condenou-o à morte, mesmo sem ter competência para tal. O senado autorizou o uso do exército para persegui-lo. Morreria em uma batalha em Pistoia.

A avaliação da promiscuidade política de Catilina permanece um mistério. Há quem o veja com simpatia, como aparece retratado nas peças de Ben Jonson e Ibsen. Para outros, um demagogo calculista. Sua moral não era tão diferente de Pompeu, Júlio César, Marco Antônio ou Augusto, que efetivamente acabou com a República.

Em 1880 o muralista Cesare Maccari  pintou essa famosa denunciação em um afresco no senado italiano. Cícero aparece imponente em um canto claro, enquanto os senadores se amontoam afastados de Catilina.

maccari-cicero

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