Com apenas seis páginas, o breve ensaio do ecologista Garrett Hardin (1915–2003) alcançou a façanha de se tornar uma das obras mais citadas nas ciências e nas humanidades no século XX. O cenário descrito parece demonstrar que a exploração de recursos comuns pela ganância individual segue um caminho sem volta. Contudo, há alternativas.
A premissa é simples: Hardin argumenta que, quando os recursos, naturais ou de trabalho, são compartilhados, a tendência lógica é o abuso por parte dos interesses individuais. A “tragédia”, mencionada no título, refere-se a um destino inevitável, enquanto o termo “comuns” diz respeito à propriedade comunal típica da Idade Média, quando cada vila possuía seu bosque, do qual os aldeões podiam caçar, coletar frutas e lenha, além de deixar os animais pastarem. O camponês que colocava uma vaca a mais para pastar obtinha uma vantagem imediata em relação aos outros aldeões, mas também sofria um prejuízo: no final, se todos adotassem essa lógica, o pasto comunal seria destruído.
Mais um diagnóstico de um dilema e um apelo à reflexão moral do que uma proposta de solução técnica, o artigo de Hardin oferece algumas possibilidades para evitar a tragédia dos comuns. A privatização seria uma delas. Sob o princípio da escolha racional e da ideia de que “vícios privados geram benefícios públicos”, o loteamento dos comuns evitaria a superexploração por parte de cada camponês. Alternativamente, um mecanismo de controle externo aos comuns, como o Estado, poderia ser a solução. É o que propõe a estratégia do poluidor-pagador: quem utilizasse mais o bem comum (com mais vaquinhas, por exemplo) faria uma contraprestação indenizatória. No entanto, há o custo de gerenciar quem utiliza mais o recurso. Por fim, a regulamentação da pastagem, restringindo o uso dos comuns com normas específicas ou cobrando pedágios pelo acesso, seria outra alternativa. Esses sistemas, entretanto, também são onerosos e sujeitos a falhas.
Polêmico, o ensaio de Hardin teve repercussão em políticas ecológicas, estratégias econômicas, gestão condominial e até mesmo na divisão da conta de restaurantes. Defensores do individualismo metodológico e da teoria da escolha racional utilizam o dilema da tragédia dos comuns para justificar políticas privatizantes. Anedotas da vida real abundam, respaldando essa abordagem.
O caso da Ilha Hispaniola, dividida entre o Haiti e a República Dominicana, ilustra bem a tragédia. Os haitianos, embora compartilhem condições materiais semelhantes às dos dominicanos, enfrentaram instabilidade política nos últimos duzentos anos, o que impediu o mínimo desenvolvimento de suas infraestruturas. Consequentemente, a população cresceu dependendo de lenha e outros recursos florestais, que, sendo públicos ou privados (mas sem proteção jurídica efetiva da propriedade), foram devastados. Do lado dominicano, as instituições se consolidaram, permitindo a continuidade das florestas e a exploração racional dos recursos.
Tragédia de Hispaniola: Haiti e República Dominicana
Com um exemplo tão alarmante, a tragédia dos comuns parece ser inexorável. Contudo, há outras premissas a considerar.
Antropólogos que estudam relações ecológicas e econômicas, como Julian Steward, Leslie White, Marvin Harris e Marshall Sahlins, apontam para a existência de limitações institucionais à exploração econômica do ambiente. Há ainda o debate entre substantivistas e formalistas em antropologia econômica, além da Nova Economia Institucional, que relembra a existência de interesses que transcendem a mera escolha racional. O estudo de Rappaport (1984) entre os tsembaga da Papua-Nova Guiné ilustra isso. Nessa economia baseada na criação de porcos, o número de varas é limitado por obrigações rituais. Os rituais esporádicos, que implicam na redução dos suínos, impedem que um tsembaga acumule muitos porcos, comprometendo os recursos comuns da aldeia.
O trabalho da cientista política Elinor Ostrom (1933–2012) apresentou uma das críticas mais abrangentes ao modelo da tragédia dos comuns. O sul da Califórnia vive um perigoso equilíbrio entre uma população numerosa, agricultura e pecuária extensivas, clima desértico e poucos recursos hídricos perenes. Quem assistir ao filme Chinatown (1974), de Polanski, entenderá o conflito californiano. Ostrom investigou como grupos locais se articularam para a gestão do lençol freático. A congregação de recursos comuns (common-pool resources, CPR) pelas partes interessadas pode ser eficaz sem necessidade de regulação central, desde que sejam atendidos alguns requisitos. Segundo o modelo de Ostrom, há oito princípios fundamentais para solucionar o dilema da tragédia dos comuns:
- Limites claramente definidos;
- Equivalência proporcional entre benefícios e custos;
- Implantação das decisões coletivas;
- Monitoramento;
- Sanções gradativas;
- Resolução rápida e justa de conflitos;
- Autonomia local;
- Relações apropriadas com outros níveis de autoridade reguladora (governança policêntrica).
Esse modelo de gestão rendeu a Elinor Ostrom o Prêmio Nobel de Economia de 2009.
Há, ao redor do mundo, diversos modelos que aplicam com sucesso esses princípios. Um deles é a gestão da Wikipédia. Cada colaborador contribui dentro de normas e parâmetros específicos. Não há uma direção centralizada para a edição dos conteúdos. Desviantes ou provocadores são punidos gradativamente pelos administradores. Há ferramentas de monitoramento, e o produto final é disseminado sob licença de uso livre, a Creative Commons.
No sistema agroflorestal que estudei no Paraná, o sistema faxinal representa uma solução prática ao dilema da tragédia dos comuns. Nesse sistema camponês, a propriedade privada (o sítio) coexiste com recursos comuns (o faxinal, o mutirão). Uma extensa rede de colaboração entre as diversas famílias garante a maximização dos ganhos coletivos do grupo frente a desafios internos e pressões externas (monocultura de florestas plantadas, exploração madeireira, privatização da terra, falta de investimentos). Apesar de ser constantemente modificado e estar em risco, o sistema mostrou-se eficiente para manter as famílias ligadas à terra com certo conforto. Assim como nos princípios desenhados por Ostrom, os faxinais possuem uma forte identificação de grupo, limites acordados, obrigações recíprocas claras e a prática do ostracismo social para quem se desvia das expectativas do sistema. A recente inclusão desse modo de gestão comunal no arcabouço jurídico como comunidade tradicional oferece uma nova expectativa de vida ao sistema faxinal.
Como se observa, o problema da superexploração individualista dos recursos comuns, identificado por Garrett Hardin, é um alerta. Bens comuns, quando deixados à exploração desregulada (ou, talvez, à “mão invisível do mercado”), tendem à destruição. Para mitigar essa tragédia, há alternativas, desde pedágios e regulamentações até a privatização ou o investimento na autogestão pelos grupos interessados, conforme proposto por Ostrom.
SAIBA MAIS
Barrichelo, Fernando. s.d. “A Tragédia dos Comuns e Divisão da Conta do Restaurante” em A Ciência da Estratégia: insights da Teoria dos Jogos para competir e colaborar.
Hardin, Garrett. 1968. “The Tragedy of the Commons”. Science. 162:1243-1248. Acessível do site da Science,http://www.sciencemag.org/content/162/3859/1243.full.pdf Em português há a tradução de Jose Roberto Bonifacio.
Ostrom, Elinor. 1990. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. Cambridge, UK: Cambridge University Press.
Rappaport, Roy. 1984. Ritual in the Ecology of a New Guinea People. New Haven: Yale University Press.
