O bibliófilo Ricardo de Bury ou Richard Aungerville (1287 –1345) realmente entendia de livros. Esse bispo e colecionador ávido tropeçava em livros acumulados por sua casa e escreveu em 1345 um dos primeiros tratados sobre a mania, o Philobiblon. Por sua vez, essa obra entraria na história como um dos incunábulos impressos em 1473, além de constituir um marco para a biblioteconomia e para a editoração. Entre os títulos técnicos de teologia e direito canônico, Bury ainda mantinha mais apreço aos livros de ciências — a cultura geral ou as artes liberais — aos livros de Direito. E também desfia críticas (ainda vigentes) aos juristas e um argumento contra a cientificidade do Direito, fundado no argumento do bel-prazer da legiferação e da aplicação das leis. Sobre o assunto escreveu o capítulo abaixo:
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Aquela prática lucrativa do Direito positivo, designado para a dispensação das coisas terrenas, as quais são úteis aos filhos desse mundo, menos ajudam os filhos da luz em compreender os mistérios das Sagradas Escrituras e o secreto sacramento da fé, visto que nos coloca peculiarmente em amizade com o mundo, o qual — como São Tiago testificou — é inimizade com Deus. O Direito certamente mais encoraja que extingue as contenções da humanidade, resultados da avareza, complicada pela leis, as quais podem ser distorcidas de qualquer maneira; embora sabemos que são criadas por jurisconsultos e príncipes piedosos para mitigar essas contenções. Mas em verdade, como a mesma ciência lida com os contrários, e o poder da razão pode ser usado para lados opostos, e enquanto a mente humana é mais inclinado para o mal, isso acontece com os praticantes dessa ciência que eles geralmente se dedicam a promover a contenção invés da paz. Em vez de citar as leis de acordo com a intenção do legislador, violentamente destorcem a linguagem das legislações para seus próprios fins.
Portanto, embora o amor dominante dos livros possui nossa mente desde a infância, e alegrar-nos com os seus deleites tem sido o nosso único prazer, mas o apetite para os livros do Direito civil cativou menos nossas afeições. Desse modo, gastamos pouco na aquisição de volumes desse tipo. Pois eles são úteis apenas como o escorpião no melado, como Aristóteles, o sol da ciência, tem dito da lógica em seu livro De Pomo. Temos notado uma certa diferença manifesta na natureza entre lei e ciência, na medida em que toda ciência tem o prazer e deseja abrir as suas partes internas e exibir o coração de seus princípios. [Deseja também] manifestar as raízes de onde abre botões e floresce, e que a emanação de suas nascentes possa ser vista a todos os homens; para, assim, a partir da luz conhecida e harmoniosa da verdade da conclusão a princípios, todo o corpo da ciência será cheio de luz, não tendo parte de trevas. Mas o Direito, pelo contrário, uma vez que são apenas representações humanas para a regulação da vida social ou os jugos do príncipes jogadas sobre os pescoços dos seus súditos, se recusam a ser trazidas para o padrão de synteresis [capacidade de julgar conscientemente], a origem da equidade, porque sente que possui mais de vontade arbitrária do que o julgamento racional. Portanto, o julgamento do sábio em sua maior parte é que as causas das leis não são um assunto adequado da discussão. Na verdade, muitas leis adquirem força por mero costume, não por necessidade silogística, como as artes: como Aristóteles, o Febo das Escolas, insta no segundo livro de A Política, onde ele refuta a política de Hipódamo, que detém fora recompensas para os inventores de novas leis, porque no sentido de revogar leis antigas e criar novas, é enfraquecer a força daquelas que existem. Para o que recebe a sua estabilidade do uso só deve necessariamente ser reduzido a nada pelo desuso.
Disso parece claramente que o Direito não são artes nem ciências, assim os livros jurídicos não podem ser chamados livros de artes ou de ciência. Nem essa disciplina a qual chamamos pelo termo especial geologia, o ciências da terra, ser enumerada entre as ciências. Agora os livros das artes liberais são tão úteis aos escritos divinos, que sem seu auxílio o intelecto em vão aspiraria a entendê-las.
Em inglês, está disponível o capítulo 19 e o Philobiblon inteiro. Em português há a tradução de Marcelo Cid, Philobiblon ou O Amigo do Livro, Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
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