Umberto Eco: a criação do leitor modelo

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Sua bagagem cultural e versatilidade fazem de Umberto Eco um exemplar romancista, cronista, crítico, semiótico, filósofo, medievalista, etc, etc, etc…Mas, há mais dele que mereça ser lido.

À parte de suas obras de ficção (O nome da rosa a mais popularmente conhecida), algumas de suas obras de teoria da comunicação A Obra Aberta, O Papel do Leitor e Os Limites da Interpretação são verdadeiros guias para aprender a ler com proveito e criticamente.

O texto para Eco é um tecido entrelaçado de signos a espera do leitor que vá preencher lacunas do não dito ou de elementos já referidos intertextualmente. O texto não fala, o leitor é que deve ter a iniciativa de produzir sentidos.

Eco critica a busca da intenção do autor. Ler os íntimos segredos nas entrelinhas além de difícil é irrelevante para a interpretação. Por outro lado, é igualmente inútil tentar descobrir a intenção do leitor. A intenção do leitor, tão enviesada e infinita, em nada ajuda na compreensão textual. Há uma terceira possibilidade: a intenção do texto. Para tal, Eco propõe dois tipos de textos: os abertos e os fechados.

Textos fechados levam o leitor por um caminho pré-determinado, exibindo cuidadosamente seus efeitos, de modo a despertar a piedade ou medo, excitação ou depressão no devido lugar e no momento certo. São estruturados como um projeto inflexível. São textos de baixa densidade semântica que pressupõe um leitor mediano cujo perfil delineia-se a partir uma especulação sociológica. A interpretação desses textos lança mão de referências às convenções pressupostas ou compartilhadas da pragmática. Visam à leitura obediente e cooperativa que não primam pela criatividade, mas a repetição e reprodução de sentidos. É o caso de sinais de trânsitos, receitas de bolo, seriados de TV, novelas e histórias em quadrinhos.

Textos abertos produzem uma pletora de caminhos interpretativos para o leitor. Embora haja múltiplas (mas não infinitas) interpretações, o leitor não pode simplesmente inserir no texto suas próprias eisegeses. As referências são hipertextuais, até mesmo, metatextuais e metalinguísticas. A abundância de pistas referenciais e a sequência inesperada da narrativa fazem que o leitor se surpreenda e busque subsídios interpretativos, pois muito do universo do texto não é por ele partilhado. Essas estruturas constroem um leitor-modelo capaz de gerar textos por meio de sua cooperação interpretativa, sendo ele próprio definido pela organização lexical e sintática do texto. Dessa forma, o texto é nada mais que a produção semântico-pragmática do seu próprio leitor-modelo. É o caso do Grande  Sertão Veredas, Finnegans Wake, os Cantos de Ezra Pound, a poesia de T.S.Elliot, dos livros jogos, ou mesmo, publicidade com duplo ou múltiplos sentidos.

Em um texto aberto, o leitor-modelo, com seu aparato cultural, tem a capacidade de preencher as lacunas com o melhor de seu conhecimento, usando sua bagagem educacional,  sua enciclopédia e convenções culturais.

Tanto em textos abertos ou fechados o leitor-modelo é ativo no processo de leitura. Por exemplo, em um texto de ficção, haverá lacunas as quais o autor deixa para o leitor preenchê-las com suas visões de mundo. Quando lemos que Macabéa morreu atropelada por uma Mercedes amarela, sabemos que a protagonista foi atinginda por um carro que obedecia as leis da física, tinha combustível e circulava pelas ruas do Rio de Janeiro. Fica ainda ao leitor imaginar os detalhes dessa cena de A Hora da Estrela. Esses pressupostos também ocorrem em textos não ficcionais. Os “fatos reais” também são preenchidos com elementos de imaginação ou ficção, pois não há um texto completo. Um bom historiador não deixa suas fontes fragmentárias falarem por elas mesmas, mas constrói um mosaico com elas. A ingenuidade de acreditar que só basta esclarecer os termos, conceitos aqui e acolá levaria à remissão ad infinitum a outras referências, algo que acabaria com a própria tessitura textual. Portanto, o leitor modelo é a audiência imaginada pelo autor que compartilhe um universo e possa fazer seus pressupostos.

Eco alerta aos perigos da superinterpretação que é sobrestimar a importância de alguns elementos indicadores, que resulta de uma propensão para considerar os mais óbvios como significativos. Para ilustrar, ele dá o exemplo de um médico que examina três pacientes com cirrose. O primeiro diz beber uísque com soda, o segundo beber gin com soda, o terceiro conhaque com soda. A atribuição de importância para os elementos óbvios da causa da doença levaria o médico culpar o refrigerante em vez do álcool. Também, o leitor-modelo deve aproximar ao texto sem querer encontrar aquilo que tenha vontade de ler nele. Se o leitor empírico focar em seu pré-conceito ao ler um texto, ocorre a superinterpretação, por exemplo, ao tentar encontrar mensagens subliminares em um vinil tocado ao contrário.

Seja o texto aberto ou fechado, o ato de ler é proativo. É algo que requer fechar o círculo hermenêutico para se ter habilidades de extrair do texto respostas nem sempre explícitas. Todavia, Eco aponta o paradoxo de textos fechados darem mais chance para a transgressão, possibilitarem outras interpretações. Já os elaborados textos abertos podem cair na ortodoxia de uma interpretação padronizada pelos leitores-empíricos, tornando-se assim, textos fechados.

SAIBA MAIS

ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, I968.
ECO, Umberto. The Role of the Reader. Bloomington: Indiana University Press, 1979.
ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação.São Paulo: Perspectiva, 1990.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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