Poucas narrativas de fontes primárias restaram sobre a escravidão no Brasil. Há quem conte cerca de 120 registros (segundo Robert Krueger), a maior parte fragmentários. Entretanto, esse corpus é praticamente desconhecido. Aqui estão algumas dessas narrativas notáveis.
Ironicamente, a opressão da escravatura não é necessariamente racista. Apesar de a escravidão contribuir para a construção do racismo que estigmatiza a diáspora africana e seus descendentes, a escravidão no Brasil afetou a indígenas e mesmo a europeus. É o que conta um dos mais antigos relatos de escravos no Brasil, o do marujo inglês Anthony Knivet ou Knyvett (fl. 1591-1649). Depois do ataque pirata de Cavendish, Knivet foi abandonado em Ilhabela. Capturado, transformou-se em escravo nas plantações dos portugueses. Mesmo quando escapou, os tupi o venderam para o famoso Salvador Correia de Sá, o Velho, para quem trabalhou. Sua escravidão teve um termo quando em 1601 conseguiu voltar à Inglaterra. Seu livro Notável viagem que, no ano de 1591 e seguintes, fez Antonio Knivet, da Inglaterra ao mar do sul ou a versão em inglês The admirable adventures and strange fortunes of Master Antonie Knivet (publicada em 1625) podem ser encontrados na Biblioteca Digital Curt Nimuendajú.
Pirataria era um modo comum de aprisionar populações costeiras em servidão até o começo do século XIX. Os japoneses Cristobal e Cosme, capturados na Ásia por Cavendish tiveram algumas desavenças com o Knivet antes do ataque do pirata à costa santista. Foram os primeiros japoneses a chegar (e morrer) em paragens brasileiras. A madeirense dita Angélique (1700?-1734) foi condenada à morte acusada de ter queimado boa parte de Montreal em 1734, sob o argumento que era notória sua mania de tentativas de fugas. O açoriano Peter Francisco (1760? –1831) foi sequestrado aos cinco anos e depois abandonado na Virgínia, tornando-se mais tarde um dos heróis da independência americana.
Quase nada há de história dos indígenas escravizados no Brasil, exceto pelas cartas dos jesuítas, e menos sobre os índios enviados para o Caribe e Europa. Desses índios enviados como figuras exóticas na Europa, um dos únicos personagens a entrar para a história foi Essomericq (1590?-1580?) ou Içá-Mirim, um carijó levado para a França e, pelo que parece, tratado bem e lá assimilado.
Com o banimento filipino de escravizar indígenas ameríndios, bem como a dificuldade de escravizar os “cristãos” (europeus), esse odioso insituto nas Américas voltou-se para um grupo humano específico: as populações sub-saharianas. Desde então, a cor da pele se tornou um identificador para a quem seria passível de cativeiro nesse lado do Atlântico.
Outra narrativa célebre é a Mahommah Gardo Baquaqua. Nascido no Benin (1820?1830?-1857?) em uma família nobre muçulmana letrada, foi aprisionado e enviado ao Brasil como escravo em 1845. Viveu no Pernambuco onde aprendeu português e fora batizado católico. Ganhando a confiança de seu senhor, galgou a posição de “escravo de tabuleiro,” mas as condições inumanas de escravidão o fez tornar-se dependente de álcool e cogitar suicídio. Vendido como escravo de navio, viajou com uma remessa de café a Nova Iorque onde escapou em 1847. Estudaria em uma faculdade e converteria ao protestantismo, fazendo de sua história uma propaganda abolicionista, publicada em 1854 com o longo título Mahommah G. Baquaqua, a Native Zoogoo, in the Interior of Africa (a Convert to Christianity): with a Descritpion of that Part of the World, Including the Manners and Customs of the Inhabitants, Written and Revised from His Own Words by Samuel Moore. Mahommah’s Early Life, His Education, His Capture and Slavery in Western Africa and Brazil, His Escape to the United States, from Thence to Hayti (the City of Port au Prince): His Reception by the Baptist Missionary there, the Rev. W. L. Judd: His Conversion to Christianity, Baptism, and return to this Country, His Views, Objects and Aim. Em português, há trechos traduzidos e uma versão completa está por sair editado por Bruno Véras.
Ainda da costa da Guiné viria uma das primeiras vozes femininas da escravidão. A mística Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1719-1778), forçada à prostituição, escreveria a Sagrada Teologia do Amor de Deus da Luz Brilhante das Almas Peregrinas no qual em 250 páginas relataria suas experiências religiosas. Ajuntou uma fileira de admiradores em Minas e no Rio. Alarmados por essas ideias de uma santa popular (e letrada), o clero a enviou ao tribunal do Santo Ofício em Lisboa, quando ela desaparece da história. De seu livro, restaram poucas notas. Sua vida é conhecida através de cartas e de documentos do processo em Lisboa, analisados por Luiz Mott em Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil (Bertrand Brasil, 1993).
Outro ex-escravo da costa da Guiné de quem temos notícia, foi o virtuoso Joseph Antonio Emidy (c.1 775 –1835). Com uma aptidão excepcional para a música, Emidy foi trazido escravizado ao Brasil e aprenderia logo a tocar violino com esmero. Durante os conflitos napoleônicos, o navio no qual trabalhava foi pego pelos ingleses que o abandonaram na costa de Falmouth, na Cornualha. Na Inglaterra, Emidy casou-se, tornou-se professor de música e foi reverenciado localmente por sua arte. O pouco que sabemos dele vem dos relatos de seu aluno, Autobiography of James Silk Buckingham, publicado em 1855, então há tempos da morte de Emidy. A história de sua vida foi resgatada pelo site www.emidy.com e pelo livro de Bernadette Jameson The boy who played his way to freedom (2012).
À parte das narrativas de Knivet e Baquaqua, os outros documentos são fragmentos esparços, não consistindo narrativas em si. Entretanto, nem por isso deixam de ser fontes para a construção de uma narrativa maior, como o caso das cartas, poemas e artigos do advogado dos pobres, o mulato Luís da Gama (1830-1882), vendido pelo próprio pai e depois se tornaria um dos notáveis abolicionistas.
O brasilianista Robert Krueger reúne várias dessas narrativas na coletânea A Million Voices: A Few Precious Pages, The First Collection of Brazilian Slave Texts. Dentre elas, vale destacar os casos demandados na justiça. Por volta de 1720, o escravo António Fernandes apela ao rei por sua prisão ilegal e tortura na Bahia. Outra carta, de 1770, Esperança Garcia, invocando a moral católica, começa “Eu Sou huma escrava …” pedindo proteção sua e de sua família contra seu senhor. Outra mulher, a emancipada Gertrudes Maria de Conceição escreveria uma carta 1835 protestando pela sua liberdade. Há o testemunho do gaúcho oriental José Porcino Martins reconduzido à escravidão no Rio Grande do Sul em 1871 após a Guerra do Paraguai.
Casos de alforria nem sempre eram honrados. Uma maneira de resistência subalterna, era de apelar para o direito canônico. É o que fez um pároco de Rio Grande, utilizando as sutilezas legais para considerar livre sob batismo a criança Felícia, filha de um homem livre e de uma escrava:
Aos doze dias do mês de junho de mil setecentos e quarenta e cinco anos nesta igreja matriz de Jesus-Maria-José da povoação do Rio Grande de São Pedro estando eu de cama enfermo dei licença ao Reverendo Manuel Henriques para batizar por forra e pôr os santos óleos a Felícia inocente filha natural de Francisca parda escrava do Comissário Cristóvão da Costa Freire e de Antônio Pires homem paisano e dando eu licença ao dito Reverendo padre para batizar por forra no dia onze ele a batizou no dia doze muito cedo por fazer gosto ao dito Comissário, amigo seu muito particular, que não queria se batizasse por forra a dita criança, e a Pedro da Costa Marim, a quem o dito Comissário fez a venda da dita sua escrava Francisca para melhor se escusar de forrar a filha e também porque não houvesse quem lhe levasse à pia batismal o dinheiro que o pai dela dava para se forrar conforme o estilo e costume de todas as freguesias do Bispado, porque para ele a não levar à pia o fez prender o dito Reverendo padre pelo governo deste estabelecimento e preso esteve até fazer o dito batizado a gosto do Comissário e Ajudante Pedro da Costa Marim e não do pobre pai, que à cama me veio trazer o dinheiro para forrar sua filha e logo a deu por forra pedindo-me assim a mandasse batizar e eu assim a mandei batizar por forra e livre como se forra e livre nascesse o dito Reverendo Padre não o fez foi por dolo e malícia e se não apareceu pessoa alguma que requeresse na pia o dito batismo e levasse o dinheiro para tal, foi por estar o pai preso e ele vir muito cedo batizar a criança, a qual, como conheço ser estilo e costume nas mais freguesias do Bispado e o pai querer dar o valor dela segundo o estado de pequenez, dou por forra e liberta no seu batismo, havendo o senhor a todo o tempo que quiser o valor da dita Felícia no estado da inocência em que foi batizada, pois é a Igreja mãe e não quer filhos que a ela chegam cativos e por descargo de minha consciência e saber se fez todo o contrário do que é costume por traição, ódio e malquerença que contra uns e outros há nesta freguesia, é que julgo ser forra a dita Felícia inocente, da qual foram padrinhos Manuel Francisco da Costa e Nossa Senhora do Rosário e por verdade de todo e ter batizado e posto os santos óleos à dita Felícia o dito Reverendo Padre fiz este assento dia e era ut supra. Pe. João da Costa Azevedo. (DOMINGUES, Moacyr. Cópia Resumida do Livro Primeiro de Batismos do Rio Grande de São Pedro 1738-1753. Porto Alegre: 1981. Pp.34-35).
Infelizmente o trabalho escravo continuou no Brasil mesmo após 1888. Em fazendas, seringais, garimpos, facções de vestuários, ainda muitos seguem trabalhando em condições subumanas. Do seringal, o imigrante português João Maria Ferreira de Castro registraria suas experiências no romance A Selva (1930).
Cabe a honra de ser uma das primeiras escritoras brasileiras a romancista maranhense Maria Firmina dos Reis (1822 — 1917). Negra, abolicionista e letrada, essa mulher livre retratou em ficção o mal da escravidão comum a seu meio em obras como Úrsula (1859), Gupeva (1861), A escrava (1887) e o Hino da libertação dos escravos (1888).
Embora nenhum desses textos tenha alcançado a publicidade das autobiografias do abolicionista e ex-escravo americano Frederick Douglass (1818–1895) ou àquela de Solomon Northup (1808 – 1863) feita filme como 12 Anos de Escravidão, as narrativas de escravidão no Brasil são ricas, dando voz a escravos marginalizados não só socialmente, mas ainda negligenciados pela historiografia e literatura hegemônicas. O resgate e publicação dessas fontes ampliam o conhecimento histórico das relações de trabalho, direitos humanos e etnicidade brasileiras.