Câmara Cascudo: A Origem da Cultura

xilogravura-camaracascudo-ericklima2012O soldado e o marinheiro permutaram bofetadas, mais ou menos teóricas, numa esquina de minha rua por causa da namorada comum, que devia chamar-se Marlene. O duelo durou vinte minutos e cinquenta pessoas assistiram. A dificuldade total foi reconstituir o delito, porque tanto no inquérito policial quanto na formação de culpa perante o juiz as espontâneas e numerosas testemunhas prestaram depoimentos inteiramente contraditórios. Como começara e como findara a luta foi impossível apurar. E todos tinham assistido…

Esse processo transfigurador da memória, desajustando e confundindo os elementos formadores do episódio, antecipando ou postergando a sucessão temática, interfere como autodefesa inconsciente e instintiva, perturbando a sequência lógica da narrativa. Imagine-se há milênios…

A visão do homem pré-histórico padece dessas dificuldades. Reerguer as cidades em ruínas sem a orientação do plano anterior. Paisagens de intermitências que antes eram continuidades lógicas.

Possuímos documentos da atividade humana desde o Pleistoceno, ou seja, do Paleolítico inferior, período chelense. A velha divisão de [Chistian Jungensen] Thomsen, data de 1835; estudando o Homem pelas indústrias iniciais — Idade da Pedra Lascada, Idade da Pedra Polida, Idade dos Metais —, fixa a origem insofismável das culturas.

Creio que do ponto de vista didático o nascimento da cultura humana iniciou-se com os vestígios materiais da indústria lítica, enfrentando pela inteligência o complexo atordoador da natureza hostil e virgem. Articulá-la com o esforço animal, na plenitude do instinto defensivo, é apenas um exercício intelectual em favor da ditadura biológica. Essa exaltação do orgânico em detrimento do social reduz a tenacidade do esforço humano, em centenas e centenas de séculos, ao humilhante plano da causalidade ou do fatalismo, inaceitáveis ambos. Não sendo conhecida de doutrina alguma contemporânea a explicação, mesmo primária, do processo diferenciador dos primatas superiores ao Homo sapiens, porque justamente o tipo menos biologicamente resistente foi o escolhido para a vitória fisiológica de todas as forças brutas, bestiais e telúricas, ensinar-nos da aprendizagem pela observação zoológica jamais provará por que o Rei da Criação, senhor das técnicas, não conseguiu a perfeição maquinal das formigas, das abelhas e dos castores. E continua tendo problemas de organização e de acomodação no meio dos semelhantes, inquietos e desconfiados.

Creio que a cultura nasça do útil-necessário, no ambiente do real-imediato. Diante da premência da fome, frio e desabrigo, o primeiro material foi o mais próximo e a primeira técnica improvisada pela urgência vital.


Câmara Cascudo, Luís da. Civilização e cultura: pesquisas e notas de etnografia geral. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983.

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