Tecnologia não é a salvação

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O paleontólogo Peter Ward argumenta que Medeia — o grande organismo multicelular  unitário chamado Terra (na verdade  uma versão maligna de Ward para a hipótese de Gaia) — visa reduzir a complexidade da vida em protozoários e espécies microbianas. É por isso que tivemos tantos pontos de gargalo populacional e, talvez, a missão de seres humanos seja a auto-destruição e extinguir a maior parte da diversidade biologia. Tecnologia, de acordo com Ward, pode impedir esse Armagedom ecológico.

Ward tem um bom argumento, mas prefiro ater-me ao conselho da antropóloga Margaret Mead. Ela pedia para repensarmos o futuro e confiar menos em soluções tecnológicas e mais na mudança de comportamento, como a nossa conservação dos recursos naturais.

É incrível como somos dependentes da tecnologia. Por que malhar pesado, suando por horas longas, privar-nos de calóricas e saborosas comidas, se podemos ter uma cirurgia plástica com rápida sucção de gordura?

Durante a maior parte da presença do homo sapiens na Terra, o estilo de vida foi  de caçador-coletor. Se antes vivíamos-se com poucos pertences, usando instrumentos simples de pouco poder de transformação, como o fogo, poderíamos agora renunciar a eletricidade e os combustíveis fósseis (meio difícil hein…). Será que um dia os remanescente caçadores-coletores que se mantêm na Austrália, Kalahari, Ártico, Amazônia Ocidental e Ilhas Nicobar contarão mitos aos filhos sobre uma época de sonho (ou pesadelo), quando apareceram pessoas estranhas que não sabiam fazer fogo, com instrumentos esquisitos e com uma cobertura excêntrica sobre a pele?

No meio ao otimismo tecnológico do início do século XX, o pensador francês (e por um tempo “brasileiro”) Georges Bernanos avisava:

O perigo não está nas máquinas, senão deveríamos realizar o sonho absurdo de destruí-las pela força, à maneira dos iconoclastas que, espatifando as imagens, pensavam aniquilar também as crenças. O perigo não está na multiplicação das máquinas, mas no número incessantemente crescente de homens habituados, desde sua infância, a desejar apenas aquilo que as máquinas podem dar.

Outro francês, o teólogo e crítico social Jacques Ellul, alertava para os perigos de se confiar na tecnologia. A técnica estaria tomando lugar da humanidade. Em busca da perfeição e efetividade absoluta, a razão técnica substitui a agência humana. Não se trata de ser um neo-ludita, ser contra as tecnologias em si, mas o mal estaria depender-se cada vez mais nas tecnologias e elas dominarem a humanidade, não o inverso. O ser humano passa a cada vez mais ser pautado por restrições e determinações criadas pela própria técnica que deveriam facilitar a vida humana, mas acabam por complicá-la e aliená-la.

Por outro lado, o demógrafo e médico sueco Hans Rosling aponta como um dos grandes males atuais a concentração da tecnologia. Descobertas e inovações que se tornam correntes no Norte Global não chegam tão facilmente a rincões relegados à pobreza. O acesso a tecnologia melhoraram em massa a qualidade de vida desde a Revolução Industrial, mas teve seus danos colaterais. Entretanto, essas externalidades são as únicas consequências que grande parcela da população recebe das novas tecnologias.

As tecnologias tendem a ser depedentes do conhecimento científico. No entanto, esse tipo de conhecimento é parcial, provisório, zetético e contigencial. A vida dos laboratórios de Bruno Latour e Steve Woolgar, o caso Sokal e as rotineiras medidas de retratação que caracterizam a via normal da ciência demonstram o quanto esse conhecimento é dependente de processos humanos e sociais. Assim, do mesmo modo que o processo científico deve ser ponderado com outras informações (sobretudo a ética), as decisões da vida não podem ter um fundemento no cientificismo ou no tecnologismo. Tampouco no obscurantismo.

Infelizmente o público leigo, por não conhecer o processo científico acaba polarizado. Ora acabam caindo em obscurantismo, isto é, o culto à ignorância ou império das opiniões ou doxa. Ora depositam fé no cientificismo, a concepção de que o conhecimento científico seja absoluto e fora das contigências do espaço e tempo e que as soluções virão pela tecnologia.

Evitando um moralismo maniqueísta, é complicado empregar tecnologias. A revolução verde prometeu alimentar o mundo subdesenvolvido e evitar a superpopulação antropofágica prevista por Malthus. Algumas décadas depois, temos uma explosão populacional e ainda fome permanente. Admito que agora um hectare pode alimentar uma população maior do que antes, mesmo com um menor impacto ambiental, mas ainda tenho medo acabamos comendo Soylent Green.

SAIBA MAIS

Subdeterminação na ciência: a tese Duhem-Quine

ELLUL, Jaques. A Técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

BERNANOS, Georges. La France contre les robots. 1947.

MEAD, Margaret (org.). Cultural Patterns and Technical Change. Edited by Margaret Mead. Paris: UNESCO, 1953.

WARD, Peter. The medea hypothesis: is life on Earth ultimately self-destructive? Princeton University Press, 2009.

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