Replicou o velho:
-Este aqui anda cansando os mortos aos diabos. Mas deixe disso e vamos ao que importa: sou Pedro e não Pedro Grullo, que tirando-e um d no nome me faz o santo fruto. É Deus verdade que quando disse Pero Grullo pareceu que via as asas.
– Folgo-me de te conhecer– repliquei — És tu aquele da qual dizem as profecias de Pero Grullo?
* * *
A figura de Pero Grullo (ou Pedro Grullo) ocupa um lugar singular na tradição literária ibérica: nasce no folclore, mas amadurece como instrumento crítico de alta sofisticação intelectual. Longe de representar apenas a comicidade popular baseada no óbvio, suas “profecias” tornam-se, no Século de Ouro espanhol, um mecanismo privilegiado de desmontagem da retórica vazia, da falsa erudição e da autoridade ilegítima. É sobretudo na obra de Francisco de Quevedo que essa figura alcança sua expressão mais aguda, convertendo o riso ingênuo em sátira corrosiva e diagnóstico moral.
A figura de Pero Grullo transcende o mero folclore para se tornar, na literatura espanhola do Século de Ouro, uma poderosa ferramenta de desconstrução retórica. Originário dos pliegos sueltos — folhetos de cordel amplamente difundidos nos séculos XVI e XVII —, Pero Grullo nasce com um propósito simultaneamente pedagógico e satírico: zombar de falsos profetas e pseudo-sábios que proferem obviedades (truísmos) com a solenidade de revelações divinas. Contudo, foi Francisco de Quevedo quem elevou essas chamadas “profecias de parvo” a um nível de sofisticação intelectual e de ferocidade política sem precedentes.
As profecias populares de Pero Grullo seguem uma lógica peculiar: a da verdade absoluta, porém inútil. Trata-se de afirmações inegáveis, mas destituídas de qualquer valor cognitivo prático. Essas fórmulas podem ser organizadas em algumas tipologias recorrentes.
A estrutura da “perogrullada”: tipologias do absurdo
As profecias populares de Pero Grullo seguem uma lógica de “verdade absoluta, porém inútil”. Elas podem ser categorizadas em cinco grupos principais:
Tautologias: afirmações circulares nas quais o sujeito é definido por si mesmo. “O que morreu, está morto” apresenta a finalidade da morte como se fosse uma revelação profunda.
Predições de inevitabilidade: prever aquilo que a própria natureza já garante. “A mulher grávida dará à luz” transforma um processo biológico em um prognóstico solene.
Observações do óbvio: fatos espaciais ou físicos imediatos. “O que está na mão não está no telhado” enfatiza uma verdade trivial como se fosse um segredo oracular.
Condicionalidade nula: conselhos que só se aplicam caso uma condição básica seja atendida. “Quem tem cabeça, que coloque o chapéu” é uma instrução que nada acrescenta à ação humana.
Sabedoria nonsense: jogos linguísticos que simulam profundidade. “Quem cair na cova sairá moreno” explora o duplo sentido de moreno como “escuro” ou “bronzeado”.
A Transformação quevediana
Se, na tradição popular, o objetivo era o riso simples diante da tolice, Quevedo transforma a perogrullada em um verdadeiro bisturi sociopolítico. Em obras como Cuento de cuentos e Sueño de la Muerte, ele não se limita a relatar esses ditos, mas os conceptiza, elevando-os à condição de crítica sistemática.
O espelho da corrupção
Para Quevedo, a profecia óbvia serve para denunciar que aquilo que deveria ser um escândalo tornou-se uma lei natural. Quando Pero Grullo afirma que “na corte, o que melhor mente, mais medra”, Quevedo utiliza a estrutura da profecia para descrever a realidade presente. O humor negro reside no fato de que a corrupção é tão onipresente que enunciá-la se torna tão óbvio quanto dizer que “o fogo queima”.
Ataque aos arbitristas e charlatães
Quevedo nutria profundo desprezo pelos arbitristas — indivíduos que propunham planos econômicos mirabolantes e simplistas para salvar o Império. Ele parodiava o estilo pomposo desses personagens com profecias que eram, na verdade, desejos satíricos disfarçados de previsões: “O reino será bem governado quando os que comem à custa da república pagarem pela sua comida”.
Antítese entre o popular e o quevediano
Pero Grullo Popular (Folclore)
Finalidade: humor simples e sabedoria camponesa.
Alvo: a obviedade em si mesma.
Tom: ingênuo e cômico.
Exemplo: “A água molha.”
Pero Grullo de Quevedo (Literatura)
Finalidade: sátira política e reflexão filosófica amarga.
Alvo: políticos, médicos, juízes e poetas medíocres.
Tom: cínico, agressivo e desenganado.
Exemplo: “Será o mundo um jogo onde o que mais tem é o que mais roubou.”
Significado filosófico e cultural
As profecias de Pero Grullo funcionam como uma verdadeira vacina contra a retórica vazia. Elas estimulam o pensamento crítico ao ridicularizar o uso de uma linguagem misteriosa e solene para mascarar a ausência de conteúdo real.
Em Quevedo, Pero Grullo deixa de ser o “tolo da aldeia” para tornar-se o cético eterno. Ele é a voz que recorda que, em tempos de decadência, a verdade mais revolucionária é frequentemente aquela que todos já conhecem, mas ninguém ousa dizer sem o disfarce da loucura ou do sarcasmo.

Francisco de Quevedo (1580–1645) foi uma das figuras mais brilhantes do Século de Ouro espanhol. Destacou-se como o mestre supremo do conceptismo, estilo permeado com aa agudeza de engenho e por associações metafóricas densas. Nascido em Madri, em uma família ligada à corte, Quevedo foi um homem de contrastes: intelectual erudito e poliglota, cavaleiro da Ordem de Santiago e diplomata, mas também satírico feroz, dono de uma língua mordaz que lhe rendeu inimigos poderosos e períodos de prisão e exílio. Sua vasta obra oscila entre a poesia metafísica e moral, de tom estoico, e a prosa satírica e picaresca, como em A Vida do Buscón e em seus famosos Sueños (Sonhos), nos quais dissecou, com cinismo e genialidade, a decadência social, política e moral da Espanha sob o reinado de Filipe IV.
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