O conceito da Grande Cadeia do Ser fundamenta-se em uma estrutura hierárquica que ajuda a explicar a organização e a ordem do universo.
Cunhado por Arthur O. Lovejoy para descrever um sistema de percepção de realidade na história das ideias ocidentais, essa escala da natureza interconectado delineia um contínuo da existência, variando das formas mais baixas às mais altas, do mais simples ao mais complexo.
Nas sociedades europeias pré-modernas, a Grande Cadeia do Ser desempenhou um papel fundamental na formação das percepções dos reinos natural e sobrenatural.
Em síntese: a Grande Cadeia do Ser
- Deus
- anjos
- humanos
- animais
- vegetais
- minerais
A Grande Cadeia do Ser nas Sociedades Europeias Pré-Modernas
Filósofos naturais, incluindo Aristóteles, Galeno e estudiosos medievais posteriores, empregaram hierarquias para categorizar e compreender o mundo natural. Os seres vivos estariam posicionados nessa escala — ideia que predominou no Ocidente até a virada darwiniana. Ao atribuir propriedades específicas a cada entidade com base em sua posição percebida na cadeia, esses estudiosos desenvolveram sistemas como a Grande Cadeia do Ser.
Na Grande Cadeia do Ser, as entidades foram posicionadas em uma escala baseada em sua percepção de proximidade com a divindade ou a forma ideal de existência. Teólogos e filósofos como Tomás de Aquino e Pseudo-Dionísio Aeropagita empregaram esse conceito para articular sua compreensão do cosmos. No topo da cadeia residia Deus, seguido por seres angelicais, humanos, animais, plantas e, finalmente, objetos inanimados.
A Grande Cadeia do Ser teve efeitos de longo alcance nas estruturas sociais das sociedades pré-modernas. Serviu de justificativa para sistemas hierárquicos como o feudalismo, que mantinham uma estrita estratificação social. A crença em uma hierarquia inerente dentro da ordem natural e social reforçou as noções de autoridade divina e justificou o poder dos monarcas e aristocratas como representantes de Deus na Terra.
Um exemplo do emprego dessa perspectiva ocorre em “An Essay on Man”, escrito por Alexander Pope. O ensaísta em verso integra o conceito da Grande Cadeia do Ser para ilustrar a ordem natural e o lugar da humanidade dentro dela. Pope apresenta um universo hierárquico onde cada elemento, desde a menor partícula até a forma de vida mais elevada, tem seu lugar, enfatizando a interconexão e interdependência de todas as partes. Perturbar um elo afetaria toda a cadeia, e Pope destaca que a ordem e harmonia do universo são mantidas por essa estrutura divina. Os seres humanos, ocupando uma posição intermediária entre os animais e os anjos, devem aceitar seu lugar sem orgulho ou ambição de transcender, pois tais aspirações levam à desordem. Este conceito sublinha a importância da humildade, aceitação e compreensão do próprio papel no grande esquema, explorando temas de limitação humana, busca do conhecimento e providência divina. Contudo, essa visão de mundo não resistiria às descobertas científicas, questionamentos morais e mudanças políticas do final do Iluminismo.
Substituição da Grande Cadeia do Ser
O surgimento da Revolução Científica e do Iluminismo trouxe uma mudança do pensamento pré-moderno para o moderno, desafiando a Grande Cadeia do Ser. A observação empírica, as metodologias experimentais e a busca das leis naturais tornaram-se centrais para a investigação científica. Figuras como Isaac Newton e Galileu Galilei propuseram explicações matemáticas e mecanicistas para o universo, minando a noção de uma ordem hierárquica fixa.
Simultaneamente, o Iluminismo introduziu novas ideias filosóficas, como o empirismo e o conceito de individualismo. Filósofos como John Locke e Immanuel Kant enfatizaram a importância da razão e da autonomia dos indivíduos. Essas ideias desmontavam a noção de uma hierarquia predeterminada e enfatizavam a igualdade e o potencial de todos os seres humanos.
Impacto nas estruturas sociais
Como mencionado, o Renascimento, Iluminismo, as Revoluções Francesa e Científica mudaram tal perspectiva hierárquica, apresentando outros modelos e taxonomias. Contudo, o filósofo Charles Taylor (1991; 2004) notou as pessoas ainda vivem uma complementaridade hierárquica. De acordo com essa concepção, a hierarquia social corresponde a um padrão transcendente que existe dentro e fora da natureza, ou seja, ainda persiste uma visão de Grande Cadeia do Ser, pois isso evitaria reduzir-se o sujeito a um mero material para projetos de outrem.

A Grande Cadeia do Ser
Ordem e posição no pensamento político
A Grande Cadeia do Ser afetou o conservadorismo. Ambas ideias compartilham a preferência por hierarquia, tradição e estabilidade. A visão de mundo medieval e renascentista da Grande Cadeia do Ser fornecia uma estrutura hierárquica ordenada por Deus, onde os seres eram classificados com base em suas qualidades e habilidades percebidas. Da mesma forma, o conservadorismo defende a preservação dos valores e instituições tradicionais, enfatizando a importância de manter a ordem e a continuidade social.
A obra do filósofo conservador Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução Francesa, tornou-se um texto fundamental para o conservadorismo. Burke apontou a associação de qualidades transcendentes com indivíduos ou classes particulares para justificar seu status superior e poder sobre os outros. A visão de Burke da Grande Cadeia do Ser estendeu-se à defesa de estruturas religiosas e políticas estabelecidas, enfatizando a importância da tradição e estabilidade na sociedade.
A Grande Cadeia do Ser e o conservadorismo defendem uma ordem social estruturada e estável, com ênfase em manter a tradição e resistir a mudanças radicais. Ambos pressupõem valores hierárquicos, enfatizando a autoridade e muitas vezes rejeitam o igualitarismo.
A obra-prima na História das Ideias
O trabalho original de Arthur O. Lovejoy, The Great Chain of Being A Study of the History of an Idea, 1936 (A Grande Cadeia do Ser: Um Estudo da História de uma Ideia), explora o conceito da Grande Cadeia do Ser. Lovejoy traça meticulosamente o desenvolvimento e a influência dessa ideia, que abrange a interconectividade e a gradação da existência, das formas mais baixas às mais altas. Argumenta que a força da ideia estava em sua plenitude, continuidade e gradação. Descreveu como esse conceito moldou visões de mundo, estruturas sociais, pensamento científico e discurso filosófico durante aquela época. Tal trabalho afetou todo um paradigma de história das ideias.
O autor Arthur Oncken Lovejoy (1873-1962) foi um filósofo e historiador intelectual americano. Pioneiro no desenvolvimento das disciplinas de história das ideias e história intelectual como campos distintos, Lovejoy ocupou cargos de professor na Johns Hopkins University e na Harvard University, onde fundou o History of Ideas Club e co-fundou o Journal of the History of Ideas .
SAIBA MAIS
Burke, Edmund. “Reflections on the Revolution in France.” Democracy: A Reader. Columbia University Press, 2016. 234-238.
Lovejoy, Arthur. The great chain of being: A study of the history of an idea. Routledge, 2017.
Taylor, Charles. “Three Malaises.” In Sources of the Self, 1991, pp. 45-62.
Taylor, Charles. Modern social imaginaries. Duke University Press, 2004.

Não conhecia este pensador norte-americano. A tese dele, de certa forma, e respeitadas as muitas diferenças, apresenta similaridades com a crítica de Emmanuel Lévinas à ideia do Ser como causadora de um um pensamento autoritário e violento que desconsidera o outro em nome de um ser que representa o ego de nossas sedes de poder e dominação.
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A disciplina das histórias das ideias e seus principais autores, como Lovejoy, meio que saíram de moda. Ficaram hoje restritos a nichos e regiões.
Interessante sua analogia com Lévinas. Enquanto a ideia de Lovejoy de um universo hierárquico e interconectado implica uma ordem e unidade inerentes sob uma única realidade do Ser, a ênfase de Lévinas na relação ética com o Outro desafia a noção de um conceito unificado e autoritário de Ser.
Vemos ainda hoje ideologias que vê o Ser como uma entidade singular e dominante que justifica a imposição de poder e controle sobre os outros. Desconsidera o imperativo ético de considerar o Outro e suas necessidades, promovendo uma visão de mundo autocentrada e dominadora.
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Exato: hoje mesmo gravei um bate papo sobre filosofia e poesia para uma rádio de Teófilo Otoni, dentro de um projeto de extensão, numa conversa com um professor de filosofia da UFVJM, e falamos sobre esta temática. Aliás, Levinás questiona, inclusive, a palavra tema, como algo fechado em um único conceito. Muito bons seus posts.
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Que legal. Tem link do bate-papo?
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Vai ao ar pelo canal do YouTube do Projeto. Projeto Rádio ZóiD’agua, programa Prosa Filosófica. Será publicado nas próximas semanas.
Você tem Instagram?
O meu é @estevammatiazzi
Caso tenha enviarei o link quando for publicado pelo direct do insta.
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Beleza. Vou acompanhar.
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