História das Ideias: conceitos através dos tempos

Liberdade, homem, direitos, Criador, vida, felicidade: palavras tão usadas e tão óbvias que, de tão gastas, generalizar seus sentidos tornou-se fácil. Teria Thomas Jefferson usado-as como você as entende na Declaração de Independência? “Todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. 

Essa declaração e ideias causam tanto impactos no mundo que merecem ser submetidas a um exame ponderado.  A liberdade de Thomas Jefferson não era para todos. O Criador, para ele, era o distante Deus do deísmo. Por homem, excluía as mulheres, os índios, os escravos e outros privados de direito o qual para Jefferson oscila entre o direito natural e o contrato social. Vida e felicidade, em seu sentido político desde Jefferson, merecem outros ensaios. A consideração da ideia em seu contexto e conjuntura é a história das ideias.

102 grandes ideias do Syntopticon de Adler
102 grandes ideias do Syntopicon de Adler

A história das ideias, embora próxima da filosofia e da história, é uma disciplina e um método de inquirição independente. A história das ideias discorre sobre como percebemos o mundo — tangível, interior ou imaginário, — e suas representações através do tempo.

A disciplina vai além da história da filosofia, pois aborda a história da arte em seus períodos estéticos, as ‘grandes narrativas’ do discurso crítico, os paradigmas nas ciências, as épocas literárias, as ideologias políticas e outros temas. Dessa maneira, a história das ideias seria a versão diacrônica aos estudos culturais e às teorias sociais. Também auxilia a filosofia remediando uma prática comum de ensinar a história de conceitos e dos intelectuais como fosse a filosofia em si.

A historia da história das ideias

Como seria de se esperar, a história das ideias possui sua metahistória. Este estudo tem raízes na história da filosofia, na teologia, na filologia. Outros estudos da linguagem e crítica, além das ciências sociais —antropologia, sociologia, ciências políticas e psicologia — contribuíram para refinar os métodos da história das ideias.

Uma abordagem comum é associar uma ideia com a vida de seu expositor. O historiador grego Diogenes Laertius (200-250 dC.) escreveu As vidas e opiniões de filósofos eminentes com detalhes e fragmentos de filósofos que estariam perdidos para sempre se não fosse sua compilação. O problema é enfocar mais no autor que na obra.

Há também um método etimológico. No começo da idade média Isidoro de Sevilha escreveu suas Etimologias, uma verdadeira enciclopédia na qual se apresentavam a origem e o desenvolvimento das raízes históricas de vários conceitos. A semântica histórica é o legado moderno desse método. Algumas ferramentas para esse método são os dicionários como o da Real Academia Espanhola e o Oxford English Dictionary que possuem informações sobre a história da palavra e seus usos.

Registrar como uma ideia foi tratada por diferentes autores é também um método muito útil. No século XI, Pedro Abelardo escreveu as Collationes e o Sic et Non, duas colagens tediosa de opiniões dos antigos teólogos patrísticos comparadas com as dos filósofos, especialmente Aristóteles.

As ideias mudam e apontar evidências dessas transformações é uma contribuição da filologia à história das ideias. Nas polêmicas do renascimento, Lorenzo Valla (1407-1457)  e depois Erasmo de Roterdã (1466-1536) demonstraram as divergências entre a teologia escolástica e a Vulgata quando comparado com os textos patrísticos e bíblicos em suas línguas originais pelo método filológico.

As ideias suportam a polêmica e apologética. A dogmática, o estudo do desenvolvimento das crenças na teologia cristã, desde a Reforma estuda a antiguidade, legitimidade e efeito no pensamento e prática cristãos. Os debatedores da reforma buscavam nos escritos clássicos, patrísticos e nas Escrituras a justificativa de suas posições e desenvolveram sistemas de citações e indexação, como linhas em poemas, divisão em capítulos e versículos dos livros antigos.

Outra forma de traçar a história das ideias é a genealogia (ou a arqueologia, outra abordagem inicial) das ideias. Nietzsche e Foucault fizeram obras fantásticas sobre temas como a moral e o poder. Seus métodos, genealogia das ideias e arqueologia do saber, explicando a transição de um sistema de pensamento para outro, pela sucessão de fases que não são teleológicas ou racionais.

Rigor metodológico no iluminismo

Os historiadores Johann Jakob Brucker (1696–1770) e Giambattista Vico (1668–1744) merecem os créditos dos primeiros estudos sistemáticos com um rigor metodológico da história das ideias. Brucker escreveu a Historia doctrina de ideis (1723), uma avaliação crítica das ideias e escolas de pensamento da filosofia, concentrando-se no idealismo platônico. Vico rejeitou como historicamente inválido o pressuposto, até hoje difundido, que os gregos inventaram a reflexão abstrata por meio da filosofia. Comentando Brucker, Vico demonstrou que a história das ideias não começou com Platão, mas com o conceito religioso de sabedoria, proposto pela poesia e mitologia.

Fundação da Disciplina

Entre as duas Grandes Guerras do século XX, a história das ideias floresceu como disciplina em seu próprio mérito.

A Universidade de Uppsala foi pioneira ao criar a cátedra Emilia e Gustaf Carlbergs em história das ideias e das ciências. Com o fomento desse casal, o historiador Nils Johan Nordström (1891–1967) começou a pesquisar e lecionar sobre história das ideias e logo a publicar o anuário Lychnos —ainda hoje um dos principais periódicos sobre o tema. Seu sucessor, Sten Lindroth (1914–1980) teve como orientando em doutorado em história das ideias o francês Michel Foucault. Hoje, dez institutos em universidades suecas devotam-se à história das ideias e da ciência.

Ainda na década de 1930, o sociólogo e filósofo austríaco Karl Mannheim (1893–1947) propôs a Sociologia do Conhecimento. Mannheim preocupava-se pela produção, interpretação e recepção do conhecimento. Também apresentou uma distinção entre história das ideias e da história materialista vigente no pensamento marxista.

Outra vertente contemporânea foi iniciada por Arthur Oncken Lovejoy (1873 –1962), professor de filosofia na John Hopkins University em Baltimore entre 1910 e 1938. Lovejoy fundou um Clube da História das Ideias frequentado por intelectuais, historiadores sociais e críticos literários. Em 1940, Lovejoy iniciou o Journal of the History of Ideas centradas em “unidades de ideias”. Lovejoy percebeu que as grandes ideias são poucas, havendo reaproveitamento (e plágio também) e mudanças de uso e significados. Dessa forma, estudar as ideias e suas transformações através do tempo, espaço e cultura, revelam como a criatividade conceitual se desenvolve pelo uso.

Como proposto por Lovejoy, a análise de um rol limitado de ideias deve-se a Mortimer Adler (1902 – 2001), enciclopedista norte-americano. Adler escreveu o Syntopicon, dois volumes introdutórios da Coleção dos Grandes Livros publicada pela Encyclopaedia Britannica com 102 grandes ideias. Cada artigo consiste de um ensaio e uma concordância para sua edição dos grandes livros referenciando os principais escritos sobre a ideia em questão e sugestões de leituras adicionais.

Historiografia alemã das ideias

Na mesma época, os alemães inspirado na hermenêutica de Wilhelm Dilthey (1833 –1911), elaboraram várias ramos com métodos de estudos próprios: Begriffsgeschichte, Ideengeschichte, Geistesgeschichte e Problemgeschichte.

Begriffsgeschichte, cujo principal expoente contemporâneo é Reinhart Koselleck (1923 –2006), traduz-se como a história dos conceitos. Esse estudo cobre um termo (por exemplo, “cultura”), definição (qual são as definições para “cultura”), história do conceito (quais sentidos cultura teve), história da disciplina (como a cultura foi empregada) e a história da pesquisa sobre a disciplina (a cultura na antropologia, na literatura, nos estudos culturais, na sociologia e outros). Ideengeschichte cuida das ideologias. A Geistesgeschichte ocupa-se do “espírito dos tempos”, as eras dominadas por um contexto intelectual. Problemgeschichte usa métodos similares aos da sociologia, com teste de hipóteses.

Mudanças de paradigmas e semiologia

Desde a Segunda Guerra a história das ideias tem uma produção prolífica. Também teve suas críticas. Thomas S. Kuhn (1922-1996) avaliou a história das ciências e propôs que as ideias desdobram não de forma linear, cumulativa e evolutiva, sendo meros resultados de ‘influências’. História das ideias até então primava por registrar as influências que um ator na história recebera e quem por sua vez influenciou. Kuhn chamou a atenção que as ideias fluíam na ciência de forma disruptiva, com um paradigma de vanguarda desafiando o outro, tomando seu lugar se possível.

Uma crítica a abordagem foi no risco de cair na busca da “intenção do autor” e confundir correlação com causa, atribuindo influências só pelo fato de haver um milieu comum. O oposto também é válido, um historicismo e sociologismo exarcebado que dão mais ênfase ao contexto que nas próprias ideias.

Outra crítica foi sobre o objeto então elitista. A história das ideias era voltada para temas eruditos e não para mentalidades comuns. Influenciada pela École de Annales, a história das ideias ampliou seu foco além das ideias eruditas para cobrir também a história das mentalidades. Michel Foucault (1926 –1984) discorreu sobre os diferentes sentidos que a sexualidade, a loucura e o comportamento desviante tiveram pelo tempo. Logo, depois que Roland Barthes (1915-1980) proclamou a “morte do autor”, a história das mentalidades francesa preocupou-se mais com as atitudes que com os intelectuais. Por exemplo, Roger Chartier (n.1945) foca em uma história do sistema de crenças, de valores e de representações próprios a uma época ou grupo de pessoas. Às vezes, essa abordagem é chamada de história cultural. Adicionalmente, baseados no estruturalismo linguístico, na antropologia de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e na psicanálise, os franceses refinaram a semântica histórica e a história dos conceitos.

A semiologia, especialmente o trabalho de Umberto Eco (n.1932), examina como os sentidos semânticos desdobram. Inicialmente preocupado com a estética medieval, Eco aproximou-se da história das ideias em suas narrativas e reflexões semióticas. Em suas obras de ficção e ensaística, Eco utiliza a hipertextualidade com ricas e densas alusões a outros textos, além de ambientar a conjuntura sócio-cultural do desenvolvimento de temas. Por exemplo, em Baudolino (2000) há cenas da fundação da universidade como instituição, a antropologia imaginária medieval, a figura do Santo Graal.

Tendências recentes

Tanto tópicos quanto teorias sobre as ideias diversificaram nos últimos 30 anos nem sempre desenvolvida por historiadores das ideias. Alguns exemplos desses meticulosos “diletantes” que produziram monografias destacáveis estão John N.Gray, Adam Graeber e Richard Dawkins.

O filósofo John N.Gray (n.1948) utiliza a história das ideias para sua análise pessimista da humanidade. Gray critica iconoclasticamente o capitalismo, o humanismo, o ateísmo, a moralidade e a ideia do progresso entre outras.

O antropólogo Adam Graeber (n.1961) usa a história das ideias para retratar a dívida. Escreveu Debt: the first 5,000 years (2011) [Dívida, os primeiros 5.000 anos] que conta como a civilização foi construída nas obrigações das dívidas. É uma história cultural, com implicações econômicas e sócio-políticas.

O biólogo britânico Richard Dawkins (n.1941) propôs em 1976 uma explanação para a difusão das ideias por meio de memes. Os memes seriam estruturas de pensamento que difundiriam de forma viral. Criticado por não ser uma hipótese falseável, a memética não explica a propalação de ideias, mas retornou ao cenário quando as redes sociais e novas mídias tornaram-se veículos para modas, jargões, piadas e personalidades efêmeras.

História das ideias nos países lusófonos

Nos países de língua portuguesa ainda é tímida. Há somente seis artigos no Scielo dedicados à história das ideias. Atualmente não há cursos de graduação na disciplina, reservando as pesquisas do tema à pós-graduação.

Porém, desde os anos 1960 há várias monografias que abordam a história de teorias para disciplinas específicas embora haja uma tendência de serem feitas por filósofos. O filósofo João Cruz Costa (1904 – 1978) seria o iniciador dessa tradição com seu Contribuição à história das Idéias no Brasil (1967) e  longo texto e título História das ideias no Brasil: seu desenvolvimento, influências recebidas da Europa e da América inglesa e suas relações com a história das ideias na América Espanhola (1956). Para esse médico que seria o primeiro aluno matriculado na Faculdade de Filosofia da USP, as ideias europeias foram abrasileiradas, mas rejeita a tese que as ideias desenvolvidas no Brasil seriam meros transplantes. No país, o ativismo político e social dos pensadores deu diferentes conotações às ideias.

Nos rastos de Cruz Costa, outros nomes se destacaram na história das ideias no Brasil. Entre eles estão José Antônio Tobias (n.1926) autor da História das idéias no Brasil (1987) e História das idéias estéticas no Brasil (1967) e Vamireh Chacon (n.1934), autor de Nordeste na história das idéias do Brasil (1989), História das idéias sociológicas no Brasil (1977). Outras monografias são História das idéias filosóficas no Brasil (1984), de Antônio Paim; História das idéias religiosas no Brasil (1968), de João Camilo Torres;  História das ideias jurídicas no Brasil (1969) de A. L. Machado Neto; História das idéias políticas no Brasil (1968) de Nelson Nogueira Saldanha; História das ideias pedagógicas (1993) de Moacir Gadotti; História das idéias socialistas no Brasil (2003), de Leandro Konder; História das idéias pedagógicas no Brasil (2007), de Dermeval Saviani, e a História da inteligência brasileira (1965) do crítico literário Wilson Martins, mais um panorama de literatura que um estudo das ideias.

Noutro lado do Atlântico, Portugal possui uma tradição institucionalizada dos estudos das ideias. Há o Instituto de História e Teoria das Ideias na Universidade de Coimbra, obra de José Sebastião da Silva Dias (1916 — 1994), voltado ao ensino e pesquisa da disciplina. O instituto publica a Revista de História das Ideias com dossiês com temas como Revoltas e Revoluções, O Sagrado e o Profano, Antero de Quental, O Marquês de Pombal e o seu tempo, Estado e Igreja, História e Verdade.

O cenário atual de várias ideias, ideologias e teorias coexistindo no mercado, torna a história das ideias um discurso organizador dessas tramas. O uso de tecnologias amplia a pesquisa deste campo que está ainda nascendo e consolidando.

Principais métodos

A história das ideias seria um mero subcampo da história com um objeto de estudo um tanto abstrato se não fosse pelo seus métodos. Entre eles, destaco:

  •  Ideia como uma unidade: pode valer-se de métodos quantitativos, ferramentas léxico-estatísticas como Google Ngram Viewer, recorrer à etimologia, a atestação em documentos antigos, diferentes usos e nuances.
  •  Ideia como discurso: ênfase no contexto maior que na ideia. Utiliza a hermenêutica, a análise do discurso buscando o implícito, o que foi deixado de lado, a ideologia, viés, contexto textual e sócio-cultural.
  •  Ideia como paradigma: foco em uma época com características comuns, realce na ambientação (milieu), nos atores e suas políticas de poder, descrição crítica de modelos e estilos, contestação, sucessão por outros paradigmas até tornar-se obsoleta.

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