Cosmovisão: conceito antropológico e equivocações teológicas

Por Leonardo Marcondes Alves, antropólogo e cientista da religião https://orcid.org/0000-0002-7168-4222

Na antropologia o termo cosmovisão ganhou várias conotações, utilizado desde boasianos até antropólogos cognitivos para indicar coisas distintas. No entanto, não é um termo problemático na antropologia quando usado dentro de seu contexto. Simplesmente é um termo em desuso (Beine 2010). No geral, possui três sentidos entre antropólogos que ainda o empregam: cognição, componente linguístico ou percepção do ecossistema. 

Quando o termo “cosmovisão” aparece em manuais introdutórios na antropologia é mais como heurística. Habitus, ontologia, cognição são conceitos mais precisos para funções analíticas, mas o genérico cosmovisão é empregado como um atalho para algum dos três sentidos mencionadso. Muitos antropólogos simplesmente já não veem serventia para cosmovisão como conceito (Beine 2010). O motivo é que o termo não teria um referente real, sendo um mero mapa obsoleto para o território complicado da existência humana.

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Confusão conceitual em alguns círculo teológicos

O problema é que o termo cosmovisão ganhou tração entre alguns círculos evangélicos recentemente de uma forma um tanto confusa. Nesse meio aparece com dois sentidos básicos: um termo-curinga para qualquer parte intangível da cultura ou um termo sanfona que expande ou contrai arbitrariamente para cobrir referentes distintos.

Originalmente importado da filosofia por teólogos holandeses ligados ao movimento intelectual e político de Abraham Kuyper (1837-1920). No meio da política holandesa de pilarização apresentar uma “cosmovisão cristã” daria legitimidade de atuação dos kuyperianos no espaço público. Nesse sentido, a “cosmovisão cristã” coincidia com as ideologias do partido antirrevolucionário de Kuyper, pautadas em três temas: criação, queda e redenção. O conceito de Kuyper (Heslam 1998) para cosmovisão (em holandês levensen wereldbeschouwing, “visão de vida e de mundo”) seria o cristianismo (isto é, o entendimento kuyperiano de cristianismo) em contraste com liberalismo, darwinismo, socialismo e positivismo — os concorrentes de Kuyper. Cosmovisões existiriam como se fossem sistemas de pensamento discretos, relativamente fixos e mutuamente exclusivos. Seriam elementos constantes e essenciais dos quais outras doutrinas se derivariam firmemente. Como na falácia do “no true Scotsman” não seria possível sobreposições de visões de mundo. Onde já se viu um cristão socialista? Foi com essa exclusão das intersecções que a ideia propagou-se entre protestantes de língua inglesa.

Outro influxo do termo no jargão evangélico é uma consequência inesperada da tentativa de ensinar competência intercultural para missionários. O antropólogo e missiólogo Paul Hiebert (2008) utilizou o termo como ferramenta analítica para dimensões cognitivas, normativas, valorativas que em conjunto assegurem emocionalmente a compreensão de realidade de povos de uma cultura distinta. No entanto, esse sentido amplo pode ser substituído por ontologia, epistemologia, ethos, habitus ou o mesmo genérico “cultura”.

Diante das ambiguidades do termo em círculos teológicos, Naugle (2002) tentou fazer uma história das ideias da cosmovisão. É admirável seu esforço para registrar as diversas nuances do termo na filosofia e em seletas ciências sociais. Mas o tratamento do tema é amador. Por exemplo, para fundamentar o termo na antropologia utiliza duas fontes obsoletas (Redfield 1952; Kearney 1975). É espantoso que Naugle tenha acessado o célebre Annual Review of Anthropology para essa última fonte e não tenha consultado no mesmo periódico o artigo de Hill e Mannheim (1992) sobre o assunto. Hill e Mannheim (1992) talvez atrapalhasse a pintura que Naugle queria fazer de “cosmovisão”. Mas o modelo de Naugle choca-se com a realidade. Desde a virada cognitiva e o pós-estruturalismo ficou comprovado o óbvio: duas pessoas não pensam iguais. Os membros de uma mesma sociedade não compartilhavam os mesmos valores, pressupostos e pontos de vista culturais. Em uma escala agregada tampouco os sistemas de pensamento são estáticos e discretos, mas combinam elementos de diversas “cosmovisões”.

Outro emprego equivocado aparece em Sire (2004). Apesar de reconhecer que o termo é usado de modo muito vago, propõe seu conceito como um indivíduo enxerga e vive a vida. Este modo antecederia a consciência teórica, fundamentada em pressupostos e orientaria existencialmente o indivíduo. Define cosmovisão como o conjunto de pressuposições que as pessoas mantêm (consciente ou inconscientemente) sobre a composição básica do mundo. Todavia, Sire ainda repete a falácia de considerá-la como sistemas de pensamento como cosmovisões discretas, obviamente valorizando a “cosmovisão cristã” ou “cosmovisão bíblica” em competição com o “naturalismo”. Substitua a “cosmovisão” como proposta por Sire por “ideologia”, “consciência coletiva”, “imaginário”, “pressupostos” ou “paradigma” e nada muda.

Naturalmente, nenhum desses autores empregam o termo para discutir cosmovisão bíblica em sentido estrito. As visões do cosmos não foram uniformes nas Escrituras canônicas, obviamente refletindo diferentes épocas e contextos. Há a cosmovisão de Deus habitando no santo monte meio a uma assembleia divina (elohim) no Antigo Testamento como também no Novo Testamento predomina a visão de mundo de de Deus comunicado pelo Logos enquanto as nações estariam sob o controle de uma dimensão espiritual povoada de entidades — arcontes — a serem conquistadas por Cristo (Heiser 2015). Houve ainda nas religiões abraâmicas a cosmovisão de um universo empilhado em três andares: sete céus, sete Terras e sete infernos. Quais de entre essas seriam a cosmovisão bíblica insistida por muitos atualmente?

Verificação conceitual com a realidade

O termo, com definições diversas, é aplicado em outras áreas. Na filosofia o conceito passou por transformações. Hoje é refinado e frequentemente preferido sua forma alemã Weltanschauung para não confundir com o conceito já obsoleto para as ciências sociais e cognitivas (e, suspeito, evitar ser confundido com o conceito caricato kuyperiano). Aparece principalmente no trabalho do filósofo belga Leo Apostel (1991) para uma perspectiva compreensiva e complexa da realidade. Conotações que também são utilizadas em estudos interdisciplinares como de Aerts (2011).

Por influência de Ninian Smart (2000), cosmovisão aparece em estudos religiosos comparados ou em políticas pedagógicas para limitar algumas dimensões da religião, exatamente um componente mental e valorativo fluido. Ou seja, virou um termo mais neutro, sanfona e heurístico para substituir “religião” exatamente em disciplinas de ensino religioso no cada vez mais plural Reino Unido (Bråten; Everington 2019). É nesse sentido didático que percebi seu uso atualmente na kuyperiana Vrije Universiteit Amsterdam enquanto estive lá para um intercâmbio de pesquisas. No mundo escandinavo e inglês também adquiriu essa conotação (Shaw 2019). Ainda assim, nesse sentido e contexto é um termo cuja validade analítica é questionada (Tremlett 2022). Nessa abordagem é notória a distinção entre cosmovisão organizada e cosmovisão pessoal, bem como o caráter fluido de ambas.

Se no caso acima houve uma verificação do conceito com a realidade, na contramão vai seu uso reificado. Esses autores (Sire 2004, Naugle 2002) empregam-na como se fosse uma realidade e não uma construção analítica. Mesmo como conceito teológico, o termo não resiste a uma checagem de realidade. Tomando o emprego clássico kuyperiano (Bavinck, 2019) de uma “cosmovisão cristã” caracterizada pelos temas de criação, queda e redenção. Sequer tais temas são universalmente entendidos assim no cristianismo tanto em aspectos históricos quanto sincrônicos. Irineu de Lyon ou os ortodoxos gregos, por exemplo, enxergam a criação como um processo ainda em curso rumo à teose — o compartilhamento da natureza divina. Assim, não se fala de queda ou de necessidade de redenção (em termos vicários), tampouco a criação seria estática. Aquilo que Bavinck apresentou não se trata de cosmovisão ou “a cosmovisão cristã”, simplesmente é uma variante teológica dentre tantas.

SAIBA MAIS

Apostel, Leo; Van der Veken, Jan., Wereldbeelden. Antuérpia: Pelckmans, 1991.

Aerts, D., D’Hooghe, B., Pinxten, R., & Wallerstein, I. (Eds.). Worldviewsscience and usInterdisciplinary perspectives on worldscultures, and Society. Worldscientific Publishing: New Jersey, 2011.

Bavinck, Herman. Christian Worldview. Crossway, 2019.

Beine, David. The End of the Worldview Concept in Anthropology? A Summary Analysis. Manuscrito, 2010.

Bråten, Oddrun; Everington, Judith. “Issues in the integration of religious education and worldviews education in an intercultural context.” Intercultural Education 30.3 (2019): 289-305.

Heslam, Peter S. Creating a Christian worldview: Abraham Kuyper’s lectures on Calvinism. Grand Rapids: WB Eerdmans, 1998.

Heiser, Michael S. The unseen realm: Recovering the supernatural worldview of the bible. Lexham Press, 2015.

Hiebert, Paul G. Transforming worldviews: An anthropological understanding of how people change. Baker Academic, 2008.

Hill, Jane H., Mannheim, Bruce. “Language and world view.” Annual review of anthropology (1992): 381-406.

Kearney, Michael. “World view theory and study.” Annual review of anthropology 4 (1975): 247-270.

Naugle, David. Worldview: The History of a Concept. Grand Rapids: Eerdmans, 2002.

Peoples, James; Bailey, Garrick. Humanity: An introduction to cultural anthropology. Cengage Learning, 2014.

Pinxten, Rik. “Worldview.” International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. Springer, Cham, 2016. 753-757.

Redfield, Robert. “The primitive world view.” Proceedings of the American Philosophical Society 96.1 (1952): 30-36.

Sire, James. Naming the Elephant: Worldview as a Concept. Downers Grove, Illinois, InterVarsity Press 2004.

Shaw, Martha. Teaching and learning about religion and worldviews in english schools: Religion and worldview literacy. Dissertação doutoral, VID Specialized University, Oslo, 2019.

Smart, Ninian. Worldviews: Crosscultural Explorations of Human Beliefs. Cambridge University Press, Cambridge, 2000.

Tremlett, Paul-François. “Forget worldviews: Towards a Deleuzian religious studies.” Journal of the British Association for the Study of Religion (JBASR) 23 (2022): 29-41.

Willis, Jerry, W. “Worldviews, Paradigms, and the Practice of Social Science Research.” Pages 1–26 in Foundations of Qualitative Research: Interpretative and Critical Approaches. Edited by J. Willis. Thousand Oaks. California: SAGE Publishing, 2007.

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