Salvação pelo Senhorio

Epigrama encontrado em uma rocha em Havilá

Prostem-se, ó mortais!
Aceitem a violência da vida,
Aqueles que m[ata]rem por Sin*
Despertarão escravos em Dulum

*1. Dr. Sjønberg reconstrói esse verso como

Aqueles que m[orre]rem por Sin.

 

Tirel estava cansado. Desde a explosão no laboratório da NWO contaminou os mares com o agente Ny-arlathotep, as coisas não eram mais as mesmas. As pessoas estavam irritadas com tudo e com todos. A economia caiu, a política estava mais confusa, o gosto da comida não era mais o mesmo e o sol parecia não brilhar. Frequentar a igrejinha de seus pais na periferia não empolgava mais como na infância. A mulher levou os filhos à igreja. Tirel inventou alguma desculpa para ficar em casa. Iria buscá-los depois do culto para jantar com os sogros.

Navegando a esmo pelos vídeos online, buscava algo para entreter. Já não tinha ânimo para ver vídeos de política, tampouco vídeos dos doidos que diziam saber algum segredo reprimido pelo Estado, pelas corporações e pela Igreja. Depois de pular um vídeo intitulado “A verdade por trás do Ny-arlathotep” apareceu o Reverendo MacCrowley.

“Não há nada que se preste na natureza humana! Vinde, vós que estais cansado!”

O ar sério, porém sereno, transmitiu confiança. Passou a noite toda escutando as preleções expositivas do aprumado pregador da majestosa Comunidade da Sabedoria Celestial. O cara sabia das coisas. Citava as escrituras como ninguém. Os pomposos hinos da capela da Sabedoria Celestial encheram sua alma. Tudo ficava claro.

Chegou a hora de ir buscar a esposa e os filhos. Hesitou um pouco na hora de entrar na igrejinha. Ao colocar o primeiro pé dentro dela, estava a irmã Ulda. Sua velha monitora das reuniões infantis mirou firmemente como que através dele com seus olhos apagados de cataratas.

Sentiu um calafrio. Sem menos esperar sua língua se soltou e Tirel falou em um ímpeto: “I’a Cthulhu! I’a S’ha-t’n!”

Irmã Ulda só gritou: “Tá repreendido!”

No jantar tentava esquecer o incidente. O sogro ajudou. Vaidoso e dado a intelectual, o sogro emprestou-lhe o mais novo livro do Reverendo MacCrowley. Havia outros autores bons também ligado a esse novo movimento do antigo pacto, como o Reverendo Samuel Mackey. O cara entende das coisas. Sua luxuosa edição das Escrituras Anotada de Estudos era a melhor do mercado. Tirel tranquilizou-se. Era um sinal.

Folheando o livro se deu conta o quanto o culto não regulativo, sem subordinação, e as crenças sem confissão eram apenas superstições infundadas e emotivas. Compensavam a falta de lógica e a falta de conhecimento histórico-geométrico-gramatical pela alegorização. Sentiu-se um cara inteligente e privilegiado.

Na próxima vez que foi navegar pelos vídeos do Reverendo MacCrowley apareceu seu acólito brasileiro nas sugestões. Max Valongo era descolado. Barba hipster, inteligência sarcástica, voz mansa mas firme. Fazia minuciosas exposições com linguagem jovial demonstrando os equívocos dessa gentinha. Com a desenvoltura de um craque de futebol, o cara driblava todas as coisas que Tirel tinha acreditado até o momento. Max Valongo, cercado por uma farta biblioteca ao fundo, parecia falar para ele. Percebeu que a igrejinha era só um grupo de coitados querendo se iludir com o caminho para os céus.

Começou a sentir tontura. Sem querer, soltou em alta voz, “I’a Cthulhu! I’a S’ha-t’n!”

Após alguns dias Tirel estava plenamente convencido. Tentava convencer seus conhecidos. Enviava mensagens com as exposições do Reverendo MacCrowley, Reverendo Mackey e de Max Valongo. Animado, não perdia uma oportunidade para denunciar a pobreza intelectual das crendices do povão. Estavam todos destinados à condenação.

Encontrou um antigo companheiro de vigília da igrejinha. O cara estava desesperado para tentar trazê-lo de volta. Disse que a irmã Ulda orava por Tirel.

Riu na cara dele. Irmã Ulda, de tão velha nem sangue deveria ter. Sua cegueira era uma montanha.

Começou a frequentar uma comunidade filiada à Sabedoria Celestial. Foi bem recebido. Encontrou ex-irmãos que, como ele, tinham sido doutrinados nas crendices e superstições das igrejinhas. Aliviado, não estava sozinho. Outros conheciam a verdade.

A mulher no começo ficou aflita pela mudança, mas quando o sogro passou a dar sinais que concordava menos com a igrejinha e achava o máximo esse novo movimento, veio sem hesitação.

Logo aprendeu a se controlar. Embora a frase “I’a Cthulhu! I’a S’ha-t’n!” invadisse seus pensamentos, já não tinha impulsos para dizê-la.

A grande oportunidade veio. Foi a um evento onde Max Valongo iria palestrar. Riu das piadas, deplorou o engano sem esperança do povão crédulo. Com maestria, Max Valongo demonstrava que a existência humana era pequena, transiente, insignificante diante do grande Senhorio dos Dias.

Aquela noite tomou sua decisão. Iria submeter-se à autoridade, iria manifestar todo arrependimento de sua vida pregressa. Confiar no sangue derramado por um cara há dois milênios não era suficiente. O cara até fez alguma coisa com sua morte, mas funcionalmente era um subordinado ao maior e antigo Senhor. Sangria não salva ninguém.

Depois do evento veio falar com Max Valongo. Pediu para juntar-se ao movimento. Subscreveria à confissão. Um sorriso amplo indicou sua recepção.

“Bem-vindo. Não precisa se filiar diretamente à Sabedoria Celestial. Há muitos grupos independentes por aí, mas ligados à mesma cosmovisão. Mas será importante romper todos os laços com a igrejinha. Eles compartilham muitas palavras como nós, mas a crença é diferente. Você tem que se desvencilhar da seita. Os tempos estão difíceis, mas logo chegará o dia da grande aparição. Quando isso acontecer, estará salvo.” — Max Valongo assegurou-lhe.

Criou coragem e contou que escutava a voz e ele mesmo repetia a frase.

Max Valongo olhou sério para ele. Agora tinha certeza que era um dos eleitos. Os eleitos não escolhem, mas se descobrem escolhidos. E somente os que tiveram a cosmovisão certa conseguiriam entender isso. Ele era um deles. Porém, precisava produzir frutos. No passado, a subordinação até à morte daquele cara era prova que iria ressuscitar na vida eterna. Ele, Tirel, deveria também se submeter ao Senhorio.

Tirel sentia-se eufórico. Logo seria iniciado. Sabia de uma pessoa cuja cegueira não iria notar quando ele se aproximasse. Já tinha a fé e a certeza, mas agora tinha que produzir a obra para ser aceito. O golpe seria fatal e sem misericórdia. A velha nem veria. Subordinação era essencial para a salvação pelo Senhorio. Depois da grande catástrofe cósmica que aniquilaria todos, Tirel tinha certeza que ressuscitaria escravo dos Maiores e Grandes Senhores de Pegāna. Viveria acorrentado em Dulum pela eternidade.

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