
O monólogo do velho fazendeiro recapitula seu passado a um interlocutor anônimo. Trata da vida e vê o mundo a partir do sertão.
O único romance de João Guimarães Rosa (1908-1967) consiste em cerca de 460 páginas[1] de texto contínuo sem divisão em capítulos. No entanto, são discerníveis diferentes fases de Riobaldo.
Fazendeiro bem estabelecido, Riobaldo percorre sua infância sem pai, perda da mãe, criação apadrinhada pelo fazendeiro Selorico Mendes e encontro com o misterioso menino Reinaldo nas margens do rio São Francisco. Riobaldo começa a lecionar para Zé Bebelo, um semi-letrado fazendeiro da região com ambições políticas. Acaba recrutado para as guerras dos jagunços, na qual reencontra e se reencanta com Reinaldo, agora Diadorim. Meio a tiroteios, traições, tribunais de guerra, vingança, pacto faustiano com o demo (Será que teve pacto mesmo? Será que o diabo realmente existe?) há espaço para amores. Há os amores erótico e prostituído, o platônico e trágico, o casto e o convencional.
Ambientado nos sertões das Minas Gerais, Grande Sertão: Veredas ultrapassou as convenções da época para a literatura regionalista. Esse gênero era centrado ou em um idílico rural ou na crítica social, mas Rosa inovou ao apresentar o universo a partir do sertão. Riobaldo é o ancião temperado pela vida que discorre de temas universais (ao menos para as culturas ocidentais) e com copiosas alusões literárias.
As veredas, oásis de buritis e nascentes que cortam o seco Grande Sertão do Cerrado, foram visitadas pelo escritor quando fez trabalho de campo em maio de 1952. Por dez dias o autor percorreu as rotas das boiadas tangendo gado. Aprendeu o palavreado, escutou casos, viu o mundo com os olhos dos boiadeiros e dos tropeiros.
O resultado linguístico é um registro cheio de neologismos. Rosa, falante ou arranhando um apanhado de línguas, faz um retrabalho lexical inspirando-se tanto nas línguas clássicas e vernáculas quanto no português arcaico e nos dialetos sertanejos. Nominaliza verbos. Há verbalização de substantivos. Calcedoniamente coexistem a erudição e o rusticismo.
O longo contínuo de fluxo narrativo, com uma sintaxe picada e oral, retratada a dureza na vida em um lugar indefinido, o sertão. Isso dá ao um livro um caráter universalizante. Travessias mortais como o desértico Liso do Sussuarão (um lugar real), o canibalismo, redução do Outro – os catrumanos – a resto dos restos da humanidade são elementos encontrados em boa parte do mundo. Os jagunços são arquétipos de uma batalha cósmica: Joca Ramiro o líder idealizado; Hermógenes, o mal encarnado. A memória, o testemunho e o tom confessional também contribuem à construção de uma humanidade compartilhada. Neles, o leitor se identifica pelas experiência do ódio, da alegria, da amizade, da frustração, da busca por um propósito, da lealdade, da dúvida e, mesmo, da autossabotagem.
João Guimarães Rosa, o médico interiorano de Cordisburgo (MG) de modo algum era provinciano. Lutou pela constitucionalidade e encontrou carreira no serviço público como diplomata. Cosmopolita, tinha preocupações com o próximo. Durante sua estada no consulado brasileiro em Hamburgo, sua companheira Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa ajudou refugiados judeus a escaparem do nazismo.
É uma obra queer, algo tão audacioso para uma obra canônica e para o Brasil dos anos 1950. Anti-essencialista, o ser é tratado de modo fluido, pois Rosa associa o nome à identidade. Como outro memorável protagonista de um conto seu, Augusto Matraca, as ações transformam os personagens. Riobaldo faz um nome, tornando-se Tatarana e Urutu-Branco. O Reinaldo das margens do rio é o Diadorim do Sertão e a Maria Deodorina da Fé Bittancourt Marins já no corpo sem vida do amor morto.
Pelas ações o autor de obras curtas, contos e novelas, passou a ser romancista. No caso, esta seria sua única narrativa longa. As complexidades léxicas, as referências regionais, a prosa idiossincrática fazem deste romance algo difícil de se ler, quem dirá traduzir. Não por menos, uma carta trocada com o tradutor italiano acabou incorporada como elemento paratextual em sua edição canônica.
Editado pela primeira vez pela livraria e editora José Olympio em 1956, aos poucos foi ganhando outros idiomas e formatos. Teve sua versão no cinema em 1965 e em minissérie de televisão em 1985. Descobri que há uma tradução ao noruguês por Bård Kranstad, feita em 2004 e hoje esgotada. Sua tradução em inglês de 1963 por Harriet de Onís e James L. Taylor (The Devil to Pay in the Backlands) ganharia teores de romances de faroeste. No entanto, a obra esgotou-se, mas não teve amplo reconhecimento público fora do Brasil. Agora outra tradução em inglês, Bedeviled in the Backlands, de Alison Entrekin, programada para ser lançada em 2021, é promissora para fazê-la dignamente reconhecida. O romance ainda recebeu esmerada quadrinização por Eloar Guazzelli e Rodrigo Rosa em 2014.
Supersticioso não, mas mineirim precavido, Guimarães Rosa enrolou para tomar posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. Tinha sido eleito em 1963, porém temia morrer na cerimônia. Temor meio estranho. Sei lá se tinha feito um pacto numa encruzilhada. Mas o fato é que chegou a hora de enfrentar a posse. Três dias depois um infarto o fulminou.
[1] Na popular edição da José Olympio. Em outras versões e edições alcança até 600 páginas.
Ótimo texto, primo! Quando abri de curioso o “Grande Sertão: veredas” pela primeira vez achei que estava me metendo em algum hermetismo linguístico exótico e cafona. Insisti um pouco mais, e acabou que nos meses seguintes li toda a obra de Rosa. Um gigante, e até o momento uma das minhas maiores referências. Abraços!
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O Grande Sertão: vereda tem essa pegadinha. À primeira vista parece pretensioso e obscuro, depois vira um caça-palavras um pouco mais interessante, daí as referências a temas universais capturam o pensamento.
Obrigado pela visita, primo!
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Gostei, comentário simples e real… não consegui formar a ideia de que Riobaldo fosse fazendeiro. Apenas que os remanescentes do Tamanduá-Tão viviam com ele…ou próximos dele, mas me pareceu que eram pequenos sitiantes.
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Bem observado. Isso revela a ambiguidade da cultura camponesa mineira. Ser fazendeiro era mais um reconhecimento social que acúmulo de posses, visto que o sitiante-fazendeiro trabalhava no campo como seus agregados.
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