Por Carla Borges Almeida e Leonardo Marcondes Alves
ROULAND, Norbert. Nos confins do direito: antropologia jurídica da modernidade. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 407 páginas.
No livro “Nos confins do direito”, Norbert Rouland discorre sobre a descoberta do direito pela ótica da história e antropologia. Orientado por grandes questões fundamentais, indaga: como nasceu o direito? Como ele muda entre as diferentes sociedades? Podem existir normas universais? Para respondê-las analisa o direito numa linha do tempo que se inicia desde o paleolítico até a atualidade, em uma perspectiva macro que cobre do ocidente ao oriente. Assim, inicia a exposição das facetas do direito, seus fundamentos e seus obstáculos.
Segundo informação na contracapa, Norbert Rouland é bacharel em filosofia e doutor em Direito Romano, em Ciências Políticas e Antropologia Jurídica. Professor na Universidade de Aix-Marseille III, França, leciona antropologia jurídica e história do direito. Realizou trabalho de campo na África subsaariana e no Ártico.
O livro foi escrito em um gênero ensaístico, com informações etnológicas de diversos sistemas jurídicos do mundo sendo tratados de modo comparativo. A tese principal é que há entre os diversos povos um processo de juridicização, ou seja, o fenômeno da juridicidade ou a transformação de normas do convívio social em normas jurídicas, sendo mantidas por instituições que variam em grau de poder coercitivo, sistematização ou complexidade, mas independem da existência do Estado. Consequentemente as relações sociais somente são possíveis por haver uma pluralidade jurídica, coexistindo o direito cotidiano com o direito positivado pelo Estado.
A obra é dividida em seis capítulos, além de uma conclusão. No capítulo inicial, “As brumas do direito”, o autor pontua os objetivos dos estudos da antropologia jurídica e dos sistemas jurídicos criados pelas sociedades, discorrendo um pouco sobre sua trajetória acadêmica e profissional. Contextualiza a obra reiterando que todas as sociedades conheceram ou conhecem o direito, mesmo que não o denomine assim e mesmo que a substância ou importância que lhe é infligida se altere.
No segundo capítulo “O direito tem histórias”, o autor discorre sobre os estudos do direito terem se restringido, por tempos, às civilizações antigas, como a Babilônia, a Grécia e Roma. Com isso, ele mostra que tanto o direito ocidental moderno e os direitos muçulmanos e hindus tinham em comum a escrita. No entanto, ele mostra, com clareza, que o direito existia muito antes disso. E que a existência da escrita não cria o direito, apenas o regulamenta e o modifica. Segundo ele, mesmo nas civilizações onde não há escrita ou onde ela existe mas parte da população fosse excluída de seu acesso, a sociedade continua tendo divisões internas, algumas regulamentações. Ainda nessa vertente, ele descreve que a oralidade prevalece em sociedades vizinhas (comunidades, associações) e a escrita prevalece em sociedades onde há aumento nas distâncias tanto sociais quanto geográficas. Da investigação do direito dessas sociedades não ocidentais, principalmente durante o encontro colonial, nasceu a antropologia jurídica.
Então, o autor formula o questionamento sobre a possibilidade de existência do direito na era paleolítica. Como não há registros e evidências escritas, alargam-se os estudos para a arqueologia: interpretação do habitat, ossadas, sepulturas, etc. No entanto, a nossa interpretação levamos em conta os valores atuais e a sociedade em que vivemos, corrompendo, portanto, o estudo justo desses vestígios. O autor passa, então, ao que ele chama de especulação intelectual.
Para a antropologia, o direito pertence à cultura: “o que o homem constrói a partir do dado natural, que lhe é imposto” (ROULAND 2008, p. 36). Conforme o aumento e aperfeiçoamento da linguagem, mais aprimorado o direito visto a maior possibilidade de criação, observância e contestação às regras. Dentre essas regras, o autor cita as relações de parentesco. Embora as famílias existam entre os animais, as relações de parentesco são de essência jurídica. Esse é um dos berços do direito, pois determinam normas de alianças matrimoniais, critérios de filiação e de fixação de residência.
Assim, retornando à questão anteriormente posta, o autor afirma que é no paleolítico que se deve procurar a origem dessas relações, pois é necessário emprego de mecanismos (que hoje compreendemos como jurídicos) para inventá-las. Entre os indícios de existência do direito já no paleolítico, ele cita: invenção da proibição do incesto, regularização da fecundidade, domesticação do fogo e divisão sexual do trabalho.
O autor passa, então, a discorrer e demonstrar esses indícios. Com relação à regulação da fecundidade, ele disserta, sumariamente, que em uma população pré-histórica de apenas 35 indivíduos, sem a regulação da fecundidade haveria hoje quase 1600 bilhões de indivíduos. Dessa forma, conclui que algum modo de controle foi instituído, supondo o infanticídio, atraso na idade do casamento e tabus que limitava os períodos em que eram lícitas as relações sexuais. Ainda que essas práticas não fossem externadas como “direito”, esses usos, costumes ou leis demonstram a característica jurídica presente nessa sociedade.
No terceiro capítulo, com o título “O Estado, a violência e o direito”, o autor disserta sobre a legitimidade no uso da violência. A existência da proibição da reparação dos danos por parte das vítimas data desde a Antiguidade. O interesse público era de que a medição do conflito deveria acontecer de maneira pacífica. Essa possibilidade de reparação já era, então, transferida a autoridades judiciárias. Essas intervenções pacificadoras estabelecidas garantiram o aperfeiçoamento da civilização, impedindo que a vingança levasse as sociedades à barbárie. Ainda assim, o autor contesta essa explicação modesta, pois em sociedades tradicionais, nas quais não está presente o Estado, não temos essa sociedade “hobbesiana”.
O quarto capítulo “O direito no plural” é dedicado ao estudo da pluralidade jurídica, uma vez que as culturas também são plurais. Rouland demonstra a coexistência do direito estatal com o direito oculto. Com esses dados antropológicos, o autor critica o monismo jurídico. Mesmo a França, pátria do autor, que promulgou a célebre Declaração dos Direitos do Homem em 1789 exige que a lei deva ser igual a todos, quer para punição quanto para proteção. Todavia, para o autor, um referencial fixo (metaforicamente um astro único fixo) não condiz com a realidade, sendo os ordenamentos jurídicos mais semelhantes às galáxias que, ora se atraem, ora se repelem. Ilustra seu argumento com os casos do véu e da excisão feminina, além das obrigações mantidas pelos traficantes de drogas, direito obviamente em conflito com o sistema jurídico estatal.
Se o monismo jurídico estatal dá certa sensação de certeza, a opinião pública crescentemente reclama a privacidade, especialmente em questões de família, saúde, lazer, dentre outras, relegando ao Estado a função integradora dos diversos grupos sociais. Contudo, há uma tensão entre grupos de solidariedade local com a esfera pública custodiada pelo Estado. Cada vez mais há uma vivência solitária, dificuldades na integração de imigrantes, crescente dependências de drogas, aumento da criminalidade aparente, dentre outros males sociais. Nesse cenário, paradoxalmente o Estado de direito assume o papel de atuação limitada: o direito passa a ser limitado pelo próprio direito estatal.
Para atuar em áreas onde o direito estatal não entra, o autor defende o reconhecimento do pluralismo jurídico. Para o autor o pluralismo jurídico, mantido por grupos secundários de socialização de variados graus de autonomia, existe tanto em sociedades tradicionais quanto nas modernas.
Uma vez reconhecida a pluralidade do direito, o autor concentra-se na questão entre “Direito e valores”, o título do quinto capítulo. Como o direito é dotado de valores, a pretensão de haver direitos universais está eivada de valores daqueles que elencaram tais direitos do homem. Ou seja, haveria uma posição hegemônica ocidental no direito do homem em sua ambição em ser um direito universal. Soaria, portanto, um tanto colonial. Porém, Rouland contesta a narrativa de que a antropologia emergiu como meio de juntar informações para o controle colonialista, tal como o discurso do direito do homem também possa ser utilizado como colonialista. Também o autor demonstra que a caricatura do “bom selvagem” não é uma construção antropológica, enaltecendo o nativo. Para o autor, a análise fundada em um relativismo cultural, considerando o direito de cada região e povo em seus próprios termos, especialmente o direito de culturas da África, Ásia e do mundo islâmico, torna-se possível compreender seus mecanismos de proteção do ser humano dentro de cada sistema jurídico em questão. Há uma ressalva da relativização do direito em nome da relativização dos valores, com uma postura que minaria o uso do valor na administração da justiça, sob o ideal do julgamento sem juízo de valores. Entretanto, esses dilemas apontam para aceitação dos direitos coletivos, além das limitações da relação do Estado e indivíduo.
Por fim, no capítulo sexto, “Direito, natureza e sobrenatureza”, há o contraste entre o direito das sociedades tradicionais com o direito das sociedades complexas. Uma ideia de harmonia entre a natureza e a humanidade geral, em um pacto que permitiria a existência do homem na natureza. Contudo, a modernidade resultou no abandono desse contrato social, em nome de um positivismo racionalizante. Assim, há o risco de autodestruição da humanidade pela exclusão da natureza nesse pacto. O autor demonstra a importância que várias sociedades tradicionais atribuem a essa aliança. Sugere, então, que haja um novo pacto da humanidade com a natureza, reconhecendo inclusive que o ser humano não é único em ter direitos.
A obra conclui-se com uma breve reflexão chamada de “A tumba de Kelsen”. O autor abre a tumba do mestre do positivismo para lavar-lhe os ossos, como o costume retratado no sul da Itália, dando um novo significado ao antepassado intelectual. O autor encontrou em outras sociedades um direito “impuro”, em franca oposição à teoria “pura” do direito, expressão que dá o título à obra maior de Kelsen (2003). Enquanto Hans Kelsen arguia que o direito não deveria se ocupar com outras formas de normas senão aquelas tuteladas pelo sistema jurídico positivado, Norbert Rouland conclama a aprofundar-se abaixo da superfície dos códigos, utilizando um raciocínio intercultural e plural para orientar o direito.
Apesar do caráter monumental da obra Nos confins do direito, há algumas lacunas que seriam interessantes a observar. A obra é uma tradução de uma escola já consolidada de estudos da antropologia jurídica, a escola francesa dedicada aos temas de aculturação jurídica, juridicidade e pluralismo jurídico. Desse modo, o autor deixa de fora questões prementes como o estudo dos desvios das normas legais, área em que a antropologia jurídica compartilha com outras disciplinas como a criminologia, a sociologia jurídica e a psiquiatria forense. Outra área, mencionada somente de passagem, é a dos direitos indígenas e de comunidades tradicionais face ao Estado. Em tempos de contestação do próprio conceito de indigeneidade e da preservação de seus territórios e práticas tradicionais diante das sociedades circundantes, a produção do saber antropológico aplicado às essas questões é relevante. Isso porque o testemunho antropológico serve para fundamentar e mediar demandas dessas comunidades com outros atores. Por fim, outra discussão que seria bem-vinda é descrever o uso instrumental da antropologia jurídica para a pesquisa empírica do direito, especialmente aplicado à elaboração e avaliação de políticas públicas, como magistralmente Kant de Lima e Lupetti Baptista (2014) convidam a utilizar essa disciplina.
Exceto essas ressalvas, a obra de Norbert Rouland serve como uma introdução crítica e aprofundada da amplitude do fenômeno jurídico. O direito não é uma mera faceta humana, mas integrado a outros aspectos culturais e como tal deve ser estudado em toda sua complexidade cultural. Com esmero, Rouland demonstrou que adotar uma postura reducionista acerca do direito seria perverter o próprio direito.
REFERÊNCIAS
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003.
LIMA, Roberto Kant de, BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Como a Antropologia pode contribuir para a pesquisa jurídica? Um desafio metodológico. Anuário Antropológico. 2014. Disponível em http://aa.revues.org/618 Acessado em 15 nov. 2018; DOI : 10.4000/aa.618
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