A antropologia começou como uma disciplina que enfocava nos Outros. O exótico, o colonizado, o tribal, o “primitivo”, os do andar de baixo. Mas, em 1972 a Laura Nader lançou em seu artigo “Up the Anthropologist: Perspective Gained from Studying Up” como parte do livro Reinventing Anthropology, que deu voz a um escopo maior, mais justo e mais acurado para a antropologia: “estudar para cima.”
“Estudar para cima” (studying up) implica em estudar as elites com os mesmos métodos, crítica e relação pesquisador-pesquisado que os sujeitos estudados “para baixo”. Assim, Nader propõe uma compreensão ampla, na qual o retrato antropológico não ignore as relações de poder.
Não é algo novo. O economista Thorstein Veblen escreveu seu clássico A teoria da classe ociosa (1899) e o sociólogo C. Wright Mills investigou A elite do poder (1956) demonstrando que em uma sociedade moderna, burocrática, industrializada e supostamente democrática não são todos iguais em matéria de afluência e poder.
Nader trouxe esse foco e questionamento para a antropologia. Essa antropóloga jurídica baseada em Berkeley estudou os métodos alternativos de resolução de conflitos no México e Estados Unidos. Percebeu que o acesso à justiça formal é desigual e quando o pobre e o desprovido de poder comparece às cortes institucionais, especialmente as jurisdicionais, sempre está em desvantagem.
Em seu provocante ensaio, Nader que os atores que produzem pesquisa e desenvolvimento nos Estados Unidos (os militares e as universidades) são institucionalmente fechadas, conservadoras, não abertas à inovação. Produzem pesquisa supostamente neutra, mas que na prática perpetuam as desigualdades.
Seria já tempo de ter um foco etnográfico nas corporações, no governo, nos ricos, os cientistas, na polícia, nos corruptos, nos criminosos de colarinho branco, dentre outros. Só o fato de enfrentar dificuldades metodológicas, como o acesso a esses templos do poder, já renderia material etnográfico o suficiente para análises amplas da sociedade.
Essa abordagem romperia os vieses das ciências sociais em relação aos “de baixo”. Por exemplo, a associação do crime com os pobres passa a fomentar a ideia que problemas sociais são casos de polícia que de políticas públicas. Culpa-se as responsabilidades individuais sem considerar os papéis coletivos e institucionais.
Um marco democrático seria se os cidadãos tenham acesso às tomadas de decisão, instituições governamentais e assim por diante. Isso implica que os cidadãos devam saber algo sobre as principais instituições, governamentais ou não, que afetam suas vidas.
A maioria dos membros de sociedades complexas e certamente a maioria dos americanos não sabe o suficiente, nem sabe como lidar com as pessoas, instituições e organizações que mais afetam suas vidas.
Acredito que os antropólogos poderiam ser surpreendentemente bons em aplicar suas ferramentas descritivas e analíticas a um grande problema: Como pode uma cidadania funcionar em uma democracia quando essa cidadania é lamentavelmente ignorante de como a sociedade funciona e não funciona, de como um cidadão pode se “encaixar” como cidadão, do que aconteceria se os cidadãos começassem a exercer direitos além do voto, de modo que fizesse que o ‘sistema’ passasse a funcionar para eles? (p.12)
E quem saboreia o poder passa menos querer prestar contas. Em tempos quando algorítimos tomam decisões políticas, de consumo, de decisões assimétricas, conhecer quem produz e manipula esses fatores de poder tornou-se premente.
Algumas etnografias brasileiras que estudam para cima:
DE MOURA, Cristina Patriota. Considerações sobre a diplomacia num encontro etnográfico. Cadernos de Campo (São Paulo, 1991), v. 11, n. 11, p. 11-19, 2003. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v11i11p11-19
Cristina Patriota de Moura estudou uma das instituições mais elitistas do serviço público brasileiro: os diplomatas do Instituto Rio Branco e do Itamaraty.
SOARES, Luiz Eduardo; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo. Elite da tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
A etnografia que inspirou o filme e outras obras derivadas, registra o cotidiano de uma elite que não nega a designação: o seleto grupo de combate da polícia militar do Rio.
GONÇALVES, Alicia Ferreira. Cultura e mercado no contexto transnacional: uma etnografia da Tecnologia Empresarial Odebrecht. Doutorado em Antropologia. Unicamp. 2003.
Embora hoje a multinacional esteja desmoralizada perante o público depois de revelado seus envolvimentos com a lava-jato, é uma obra que continua paradigmática para mostrar os processos de internacionalização do capital brasileiro.
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Realmente interessante, especialmente pelo poder que esses grupos tem sobre todo o resto da sociedade. E como o modo de pensar de um grupo afeta sua produção. Por exemplo, o Dragões de Garagem fez um podcast sobre antropologia da ciência e um dos exemplo de sua importância foi a pesquisa da Jane Goodall sobre chimpanzés, sua visão mais “feminina” abordando os aspectos cooperativos, como a aprendizagem social da espécie foi um marco na área justamente porque os pesquisadores homens geralmente se focavam nos aspectos mais competitivos da espécie. Inclusive, acho que você vai gostar desse podcast sobre antropologia da ciência.
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Valeu pela dica, vou proucar o podcast.
Técnicas “simples” como inverter o ponto de vista da produção do conhecimento (dar uma câmera a um “nativo”) inverte totalmente os resultados em uma etnografia.
Coisas que permanece ainda mistério devido ao fato de serem estudados “para baixo” são as caixas-pretas em microeconomia. Os processos decisórios dentro de uma unidade de consumo, por exemplo, uma família é assumida tacitamente que busca maximizar a utilidade e pronto. Pesquisas de antropólogos que realmente abrem essas caixas-pretas encontram outros processos decisórios.
Obrigado pelo comentário.
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