Pouco se sabe dela. Talvez veio do sul da França ou da Galícia ibérica. Especula-se que fora bem relacionada, ou até mesmo aparentada, com o imperador Teodósio (347-395 d.C.). Seu relato de viagem da Europa ocidental à Terra Santa garantiu-lhe um lugar na história pelo seu pioneirismo como autora cristã e, com suas vívidas descrições, como a iniciadora dos guias de viagens.
Entre os anos 381 e 384, Egéria viajou sozinha (um fato notório para a época, quando mulheres eram restritas aos ambientes domésticos) pelas redes de estradas romanas montada em um burro ou mula. Foi uma das poucas mulheres escritoras no Império Romano, e seria a primeira mulher cristã atestadamente a compor uma obra de não ficção.
As narrativas de viagens – periégesis e périplos – já existiam desde os egípcios, fenícios e gregos. Helena, a devota mãe de Constantino, pôs em moda a peregrinação religiosa para os lugares sagrados da Palestina. Outras narrativas cristãs foram escritas nessa mesma época: o Itinerarium Burdigalense, a epístola de Atanásio, a peregrinação de Gregório de Nissa, e a epístola 108 de Jerônimo. Mas as observações argutas de Egéria nos convidam a lê-la como literatura ou uma etnografia.
Não escreveu como arte. Desse modo, seu estilo não é literário, mas informativo. Ao invés de utilizar o latim clássico – o qual nessa época ainda produziu os escritos de Agostinho, Boécio, Isidoro, Jerônimo e Cassiodoro – Egéria empregou o sermo cotidianus, o latim vulgar. Trata-se de uma das únicas obras extensas nesse registro linguístico, fazendo desse livro uma fonte crucial para compreender a evolução das línguas romances, dentre elas, o português.
Se consideramos a Galícia do livro como o noroeste da península ibérica, essa obra não só seria pioneira na literatura de viagem, feminina e no latim vulgar, mas também um marco inicial das literaturas portuguesas e galegas.
O manuscrito ficou perdido por uns setecentos anos, até que em 1884 o erudito Gian Francesco Gamurrini descobriu-a no Codex Aretinus (405) em uma biblioteca monástica em Arezzo. A obra, sem título e anônima, é chamada de Peregrinatio Egeriae, Itinerarium Egeriae, peregrinatio aetheriae, sanctae siluiae Aquitanae peregrinatio ad loca sancta. Inicialmente não se sabia quem era o autor, até que em 1903 o filólogo Marius Férotin achou uma referência de um monge do século VII, Valerio de Bierzo, a respeito de uma peregrina chamada Egéria. O nome ainda seria disputado: Egeria. Eiheria, Echeria, Etheria, Aetheria. Hoje, é consenso que se chamava Egéria.
Não se sabe se fora uma monja ou uma leiga, mas escrevia para suas irmãs. Na forma de epístola, na primeira parte conta-lhes seu trajeto desde Gallaecia, a travessia da Itália, a navegação à Constantinopla, a chegada à Palestina. Vai a Jericó, Belém, Nazaré, Cafarnaum, Jerusalém, Egito, Sinai, monte Nebo. Volta a Jerusalém para ir à Síria (Antioquia e Edessa), Mesopotâmia e Tarso, onde se hospedou com uma amiga que conhecera em Jerusalém. A narrativa termina em Constantinopla. O manuscrito possui algumas páginas faltando, tampouco sabemos se houve outras cartas posteriores. Assim, não sabemos seu destino ou se voltou para casa. Menciona intenção de ir a Éfeso.
Na parte final, Egéria descreve minunciosamente a liturgia de Jerusalém, com os rituais movendo entre as diferentes igrejas. Narra como era feita a catequese. Menciona de passagem a circulação de apócrifos (Atos de Tomé, Atos de Paulo e Tecla), mas nada diz sobre os movimentos ditos hereges e cismáticos, sinal que o Édito de Tessalônica (380) de Teodósio que promoveu o cristianismo imperial como única religião oficial já surtia efeito.
A filóloga Maria Cristina Martins (UFRGS) pesquisou nos manuscritos guardados na Sorbonne e agora lança pela Editora da Universidade Federal de Uberlândia a primeira edição bilíngue brasileira. Fundamentado no manuscrito Codex Aretinus (405) – publicado em fac-símile por Martins –, a edição crítica corrige algumas leituras equivocadas de outras edições pretéritas e foi feita com base na crítica mais recente sobre a obra.
SAIBA MAIS
The Egeria Project. [ site arquivado]
Boas!
Apenas uma nota: a “Galícia” ibérica nao se escreve assim em português. É “Galiza”.
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