Antropologia e o “jeitinho” na administração pública

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Quem nunca pediu para alguém “segurar” lugar na fila no supermercado, já “emprestou” a conta do Netflix ou pegou atestado médico para o dia todo quando só precisava do suficiente para o horário da consulta?

UMA DEFINIÇÃO PARA “JEITINHO”

O “jeitinho” foi objeto de estudo da antropóloga Lívia Barbosa (1996). Ela conceituou-o como uma forma especial de se resolver algum problema difícil ou situação imprevista e adversa de maneira eficiente e de forma a produzir os resultados desejados a curto prazo, sendo definitivo ou provisório, legal ou ilegal.

Em um horizonte que se confunde com o “favor” e a “corrupção”, o “jeitinho” seria um meio-termo. O “jeito” se distingue da corrupção, pois não necessariamente envolve aspectos financeiros ou quebra de algum dever legal. Mas, na prática, essas nuances nem sempre podem ser percebidas. A prática do jeitinho pode ser utilizada em qualquer situação e as pessoas identificam-se com ela pela máxima de “hoje ele precisa, mas amanhã pode ser eu”. E apesar de haver características que facilitem ou não o uso do “jeito”, como status ou renda, os fatores mais eficientes para se pedir o “jeitinho” seriam comportamentais, ou seja, o modo de pedir, a simpatia.

No contexto brasileiro, o jeitinho foi associado por outro antropólogo, Roberto DaMatta, à malandragem. Então, quanto mais socialmente aprovada o nível da malandragem, mais associada ao “jeito” (visto também como esperteza, sagacidade) e menos associada à corrupção, à desonestidade.

Assim, a práxis do jeitinho adapta ou negligencia as normas afetando vários princípios da administração pública, a saber: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Dessa maneira, conhecer as ferramentas da antropologia serve para avaliar os impactos do “jeitinho” na gestão da res pública.

PROCESSO DE FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA E ORIGENS DO JEITINHO

A formação do estado brasileiro foi estudada pelo pensador social Raymundo Faoro na obra Os donos do poder. Com conceitos weberianos, ele explica desde a formação política de Portugal até a era Vargas, analisando a sociedade brasileira pela ótica da apropriação do poder público como se fosse privado (patrimonialismo).

Weber discorre sobre o fenômeno da dominação nas relações sociais. Para ele, mais importante que a obediência real é a crença do dominante na sua autoridade e a aceitação pelos dominados dessa dominação como legítima. Os tipos ideais dessa dominação podem ser: legal, carismática e tradicional.

Na dominação legal (exemplo mais puro: a burocracia) há obediência ao estatuto, ao cargo e não à pessoa. Mudando a pessoa, a obediência continua ao próximo que assumir o cargo. Modelo ideal: todos agem segundo as normas e em prol do melhor exercício de suas funções, desarraigados de vícios e vontades pessoais.

Na dominação carismática, o líder recebe obediência devido a suas qualidades, o que o efetiva como dominante é o seu carisma. Exemplos dessa dominação foram o governo de Hitler e a liderança de Martin Luther King.

Na dominação tradicional (por exemplo, o patriarcalismo), a tradição tem o poder incontestável e válido desde sempre. Geralmente só ocorre sua derrocada quando entra em contato com o “novo”, com a modernização.

É a partir desse conceito de dominação tradicional que Weber faz o estudo do patrimonialismo e o relaciona ao patriarcalismo. O patrimonialismo, para ele, é uma forma de dominação baseada no poder da pessoa e ocorre quando o detentor do poder, o dominante, considera o Estado como seu patrimônio, fazendo confusão entre público e privado. Assim, com raízes no patriarcalismo ocorre o patrimonialismo, pois esse acaba se configurando como uma “extensão da casa” na qual a administração pública é tratada de forma pessoal.

Na obra Os donos do Poder, Faoro se apoia nessas ideias e as relaciona com o estado brasileiro. Para ele, os donos do poder são um estamento (contrário de classe, a qual segue critérios econômicos, o estamento é um grupo social definido pelas crenças, honra e tradição) que visa servir os próprios interesses. Assim, as ações estatais dependem, antes, do “estamento” que está no poder do que negociações por ideais políticos que seriam de se esperar em um Estado de direito. Para ele, esse estamento burocrático nasceu já na fundação do estado português quando os reis distribuíam terras mas as posses continuavam como patrimônio da Coroa. Esse sistema, visivelmente patrimonialista, foi transplantado ao Brasil sob a forma de capitanias hereditárias.

Assim, uma das origens do “jeitinho” está nesse sistema de ocupação de terras (capitanias hereditárias) em que, às pessoas com maior influência eram doadas terras e seus donatários detinham cargos públicos. Já nesse momento percebe-se a inserção do “jeitinho” na administração pública fazendo confusão entre público e privado.

Análogo a isso, o antropólogo Darcy Ribeiro propõe uma análise da relação de “cunhadismo” no Brasil, cuja prática consistia em um hábito dos indígenas de incorporar estranhos à sua comunidade, dando-lhes uma moça em casamento. Dessa forma, criavam-se laços de parentesco, de modo que os europeus conseguiam mão-de-obra dos “novos parentes” e os indígenas proviam-se de bens e mercadorias trazidos pelos europeus, prática que também pode ser identificada como outra das origens do “jeitinho”.

JEITINHO NA GESTÃO PÚBLICA

Cultura organizacional é o conjunto de valores e costumes aceitos por todos em uma instituição. Assim, cada empresa possui sua cultura organizacional. Paralelamente a isso, há a cultura política que abrange as relações de poder, as disputas políticas, sendo estas influenciadas pelo nosso processo de formação histórico.

A burocracia teria como principais características a formalidade, divisão sistemática e hierarquizada do trabalho, caráter impessoal e meritocracia (escolhas baseadas em competência e capacidade técnica). No entanto, essas características acabaram deterioradas pelo excessivo regramento, controle e abusos de poder nas instituições, dando à burocracia um sentido popular de regramento excessivo.

Assim, passa-se a utilizar o “jeitinho” quanto maiores forem os “entraves” existentes. Como o Estado cria diversas exigências para regular procedimentos, os cidadãos veem-se compelidos a solicitar o uso do “jeitinho” como forma de agilizar processos, pular etapas e contornar requerimentos. Às vezes, não como forma de burlar regras, mas à tentativa de “correção” de procedimentos que são vistos como inadequados.

Segundo os psicólogos Pires e Macedo, por causa desse excessivo regramento nas organizações públicas e da supervalorização do poder, ocorre a centralização das tomadas de decisões. Isso, associado à descontinuidade administrativa (mudança de gestão ligada à substituição política) acarreta em vários problemas na administração pública.

Projeto de curto prazo. Como cada governo tem um tempo restrito para desempenhar suas atividades e “mostrar serviço”, acaba por privilegiar projetos que possam ser iniciados e concluídos dentro de seu mandato. Nesse contexto, o jeitinho garante ao menos algum retorno imediato ao meio de tanta incerteza. No entanto, processos que levam à mudança comportamental e organizacional demandam tempo e praticamente não trazem retorno político como visibilidade ou autopromoção.

Duplicação de projetos, ou seja, o novo governo, em vez de concluir um projeto já iniciado em gestão anterior, tende a iniciar novo projeto praticamente idêntico, de modo a assumir a autoria. E, sob a perspectiva técnica, muitas vezes a administração é feita por pessoas que, ou não tem o conhecimento técnico necessário para o cargo, mas é um “apadrinhado político”, ou possui conhecimento de gabinete sem possuir experiência prática, o que leva a uma gestão inepta e ineficaz. Essa incapacidade técnica abre oportunidade para jeitos.

Ainda no sentido da administração inepta, surge outro problema na esfera pública, o da meritocracia. Afinal, como medir o desempenho da organização? Lívia Barbosa, no texto “Meritocracia à brasileira: o que é desempenho no Brasil?” (1996), aborda essa questão. Quando se faz uma avaliação do desempenho dos funcionários, pode-se fazer uma melhor seleção e distribuição dessas pessoas nas áreas em que terão melhor rendimento e produtividade.

Em seu ideal (bem diferente da realidade, vide post aqui), a sociedade brasileira está organizada de modo meritocrático, ou seja, para ingresso em uma instituição, há avaliações que medem o desempenho dos candidatos. Para evolução na carreira, espera-se novas formas de avaliações, também centradas na questão do mérito.

No entanto, apesar de ser uma constatação de que a avaliação de desempenho seja necessária e importante como forma de promoção e reconhecimento tanto dos profissionais como das instituições, não há consenso sobre qual é a melhor maneira de realizá-la. Por exemplo, se há um problema de ordem pessoal em uma instituição, pode-se investigar e apurar o problema de modo a remanejar o funcionário ou melhorar o seu treinamento. Se for detectado problema de ingerência, pode-se investir em formas de acompanhamento ou descentralização de decisões para evitar a ruptura dos processos.

Nesse sentido, a antropologia insere-se nesse contexto por ser a área que melhor poderia analisar esses quesitos por meio de pesquisa de campo, estudo comportamental e análise estatística dos índices apresentados. O emprego de gestores com algum treino em antropologia permitiria mapear rede de relações informais, mensurar qualitativamente o desempenho de candidatos e reconhecer inovações de processos que existem na forma de jeitinhos.

ANTROPOLOGIA APLICADA NA ANÁLISE DO JEITINHO

De modo sintético, a antropologia geral é dividida em antropologia biológica (classificada como ciência natural) e antropologia cultural (classificada como ciência social). O ramo da antropologia cultural focado no estudo comportamentais humanos, costumes, e origens socioculturais providencia explicações para fenômenos culturais.

É nessa vertente que existe a antropologia aplicada para auxiliar na formulação de políticas sociais, educacionais e econômicas por meio de pesquisa feita em vários estágios. Com base em pesquisas e estudos in loco faz-se uma investigação de modo a abranger o maior número de variáveis no comportamento dos funcionários de uma instituição.

Uma das ferramentas utilizadas pela antropologia aplicada é a etnografia, que envolve esse trabalho de campo e observação. O antropólogo insere-se dentro do grupo ou organização que se pretende estudar, participando e acompanhando as atividades e estilo de vida e trabalho do grupo para angariar informações não eivadas.

E é por meio de pesquisa de campo que o antropólogo pode inserir-se no ambiente administrativo obtendo informações livres de vícios, relacioná-las aos quadros internos e procedimentos administrativos e avaliá-las por meio de estudos comportamentais e análises estatísticas. Esses dados, aliados à uma sólida fundamentação teórica, providenciariam conhecimentos valiosos para uma gestão pública mais eficiente, podendo criar métodos para permitir uma mais fiel progressão “meritocrática”, formalizar inovações processuais existentes como “jeitinho” e fomentar uma compreensão mais aprofundada das organizações públicas.

Leia o artigo na íntegra no ResearchGate

SAIBA MAIS

BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro: a Arte de ser Mais Legal que os Outros. Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda. 1992.

BARBOSA, Lívia. Meritocracia à brasileira: o que é desempenho no Brasil? Revista do Serviço Público. Brasília, Ano 47, Volume 120, Número 3, Set-Dez 1996.

BISPO, Fabiana Carvalho da Silva, et al. 2008. O Uso do “Jeitinho Brasileiro” como um Recurso de Poder nas Organizações do País. Disponível em: http://ww.aedb.br/seget/artigos07/1075_O_Uso_do.pdf. Acesso em: 25 abr. 2015.

CAMPANTE, Rubens Goyatá. O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia brasileira. Dados,  Rio de Janeiro ,  v. 46, n. 1, p. 153-193,    2003 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582003000100005&lng=pt&nrm=iso&gt;. acesso em  junho 2016  http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582003000100005

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

ESPINA BARRIO, Angel-B. Manual de antropologia cultural. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Masangana, 2005. 382p.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3 ed. Rio de Janeiro, Globo, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1999.

PIRES, José Calixto de Souza; MACEDO, Kátia Barbosa. Cultura organizacional em organizações públicas no Brasil. Rio de Janeiro, 2006.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995. Acesso em 26/04/2015. Disponível em: http://www.usp.br/cje/anexos/pierre/ribeiro_darcy_povo_brasileiro_formacao_e_o_sentido_do_brasil.pdf

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. São Paulo, Imprensa Oficial, 1999.

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