O engenheiro militar Marcos Vitrúvio Polião (c.90 a.C.—c.20 d.C) em seus dez livros De Architectura transcendeu as aplicações das artes mecânicas da construção. O autor, que serviu na campanha da Gália de Júlio César e na época áurea de Augusto, firmou sua tríade para toda construção: venustas (beleza), firmitas (estabilidade) e utilitas (funcionalidade). Em um estilo direto, anedotal e prático, Vitrúvio estabeleceu os cânones estéticos da arquitetura greco-romana bem como tratou de temas filosóficos, matemáticos e antropológicos.
Esse excerto correlaciona a proporção entre o corpo humano e o ideal de um templo, uma das mais antigas representações antropométricas e argumentam que o corpo humano seria a fonte das unidades de medidas. Leonardo da Vinci fascinou-se com essas relações matemáticas, utilizando-as na arte tão realista do Renascimento. Repopularizado nessa época, o manual de Vitrúvio só seria complementado e substituído por aquele de Andreas Palladio.
O livro de Vitrúvio pode ser lido em latim e inglês na internet ou impresso em sua tradução em português por M. Justino Maciel (Lisboa: IST Press, 2006).
- A arquitetura dos templos depende da simetria, as regras as quais os arquitetos deveriam observar. A simetria surge da proporção, chamada pelos gregos de ἀναλογία [analogia].Proporção é um ajustamento acertado do tamanho das diferentes partes e em relação ao todo, do qual essa simetria depende. Portanto, nenhum prédio pode ser chamado bem projetado se faltar simetria e proporção. Na verdade elas são tão necessárias para a beleza do edifício quanto são para a figura humana.
- A forma humana feita pela natureza possui na face, do queixo para o topo da testa ou para as raízes dos cabelos, um décimo da altura do corpo inteiro. Do queixo para a coroa da cabeça é um oitavo de toda a altura e da nuca do pescoço para a coroa da cabeça o mesmo. Da parte superior do peito para as raízes do cabelo um sexto e para a coroa da cabeça um quarto. Um terço da altura da face é igual à do queixo do lado inferior das narinas, e o mesmo daí para o meio das sobrancelhas. Da última parte até as raízes do cabelo, onde a testa termina, fica a terceira parte restante. O comprimento do pé é uma sexta parte da altura do corpo e o antebraço uma quarta parte. A largura do peito é uma quarta parte. Da mesma forma têm outros membros suas devidas proporções. Por essa atenção é que os pintores e escultores antigos obtiveram tanta reputação.
- Assim devem as partes dos templos devem corresponder entre si, e com o todo. O umbigo é naturalmente colocado no centro do corpo humano e, se em um homem deitado com o rosto para cima e as mãos e os pés estendidos, o seu umbigo no centro, seja feito um círculo; ele tocará seus dedos e dedos do pé. Não é só por um círculo, que o corpo humano é assim circunscrito, como pode ser visto colocando-o dentro de um quadrado. Para a medição dos pés até a coroa da cabeça, e depois através dos braços totalmente estendidos, encontramos a última medida igual à primeira. De modo que as linhas em ângulo reto entre si, encerrando a figura, formarão um quadrado.
Esboço do homem vitruviano de Da Vinci - Se a Natureza, portanto, fez o corpo humano de modo que seus diferentes membros são medidas do todo, também os antigos determinaram, com grande propriedade, que todas as obras perfeitas, cada parte deveria ser um divisor do inteiro. E como eles ordenam que isso seja observado em todas as obras, devendo ser estritamente atendido nos templos dos deuses, onde as faltas e as belezas permanecem até o fim dos tempos.
- Vale notar que as medidas necessariamente utilizadas em todos os edifícios e outras obras são derivadas dos membros do corpo humano, como o dedo, o palmo, o pé, o cúbito, e que estes formam um número perfeito, chamado pelos gregos τέλειος [teleios= perfeito, completo]. Os antigos consideravam dez um número perfeito, porque são dez dedos. O palmo é derivado deles e do palmo é derivado o pé. Platão, portanto, chamou dez um número perfeito, a natureza tendo formado as mãos com dez dedos, e também porque é composto de unidades chamadas em grego μονάδεςin [unidades], que também avançam além de dez, como para onze, doze, etc. Não pode ser perfeito até que outras dez sejam incluídas. As unidades são as partes das quais esses números são compostas.
- Os matemáticos, por outro lado, argumentam que a perfeição é o número seis[1]. Isso é porque em seus raciocínios, seu divisor é igual a seu número. Um sexto é um, um terço é dois, uma metade é três, dois terços quatro, o qual chamam δίμοιρος; a quinta ordem chamada πεντάμοιρος, cinco, então o número perfeito, seis. Quando avançam, adicionam ao seis, há o ἔφεκτος, o qual chamamos sete. O oito é formado pela adição do terço, em grego, ἐπίτριτος. Nove resulta da adição da metade, portanto, o sesquilateral, ou em grego ἡμιόλιος. Se adicionarmos dois divisores, formam o dez, chamado bes alterus, ἐπιδίμοιρος. O onze é composto do número original e o quinto da ordem, chamado ἐπιπεντάμοιρος. O doze é a soma dos simples números, chamado de διπλασίων.
- Adicionalmente, um pé um sexto da altura de um homem. Argumentam que esse número seis contém a altura. O cúbito é seis palmos, consequentemente sendo vinte e quatro dedos. Por isso os gregos dividiram a dracma, como o cúbito, em seis partes, com a menor parte semelhante ao asse, a qual chamam de oboli. Imitando os vinte e quatro dedos, dividiram o obolus em quatro parte, chamada dichalca o trichalca.
- Nossos ancestrais, porém, se agradaram como número dez e fizeram o denário, a soma de dez asses, retendo esse nome o dinheiro. O sestércio, um quarto do denário, era composto por dois asses e a metade de um outro. Assim consideravam o seis perfeito e o dez perfeito, somando-os e formando dezesseis, um número mais perfeito. O pé como medida subtrai-se dois palmos do cúbito, quatro restam, o qual é o tamanho do pé. Cada palmo contém quatro dedos, o pé consequentemente possui dezesseis, como o denário possui o mesmo número de asses.
- Como portanto parece, os números têm origem no corpo humano e a proporção resulta do ajustamento das diferentes partes entre si e com o inteiro. Assim, devem ser considerados quanto construindo templos aos deuses, para arranjar as partes com o inteiro, harmonizando suas proporções e simetria.
—Vitrúvio. O Dez Livros da Arquitetura. III.1.
NOTAS
[1] A base seis era a favorita entre os mesopotâmios, geômetras e astrônomos — razão para usarmos ainda medidas em graus na geometria. Com as quatro operações básicas e quatro algarismos (1, 2, 3 e 6) é possível contar os primeiros números.
6-6=0
6/6=1
6/3=2
6/2=3
6-(6/3)=4
6-(6/6)=5
1+2+3=6
6+(6/6)=7
6+(6/3)=8
6+(6/2)=9
6+(6/3)+(6/3)=10
6+6-(6/6)=11
6+6=12