Racismo e cooptação social no Brasil

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Modesto Brocos. A redenção de Cam. 1895.

Um dos piores aspectos do racismo no Brasil é a sua negação. Negam que haja racismo no Brasil. Negam a autoafirmação étnica em nome de uma democracia racial e de uma política de embranqueamento. Para esse racismo velado o ideal seria a assimilação das minorias, sem reclamações, sem reparações e com renúncias. Porém, não funcionou. A violência contra as minorias, especialmente negros, continua rampante no Brasil e um dos poucos infelizes meios de escape é por cooptação social.

A cooptação social é o aliciamento de indivíduos a partir de seus grupos marginalizados. A existência do cooptado dá a impressão de justiça e oportunidades iguais. É um simulacro de meritocracia que serve para silenciar injustiças e manter a invisibilidade desses grupos. O cooptado ganha o status do grupo dominante e esquece de suas raízes ou serve como intermediário com seu grupo de origem.

Na cooptação racial o colorismo passa a ser instrumental. Negando a condição de negritude do indivíduo e reclassificando em tons socialmente “aceitáveis”, priva-se uma pessoa de sua identidade e enfraquece a comunidade negra.

Embora o caso do racismo contra o negro seja o mais visível a cooptação social e negação identitária ocorre contra outras minorias, como as mulheres, novos movimentos religiosos e desabilidades. Dois antropólogos, Roberto Da Matta (n.1936) e Darcy Ribeiro (1922 — 1997), notaram alguns incidentes — representativos, por sinal —do racismo em negação no Brasil.

Em 1968, quando estava em Cambridge, Massachusetts, realizando, na Universidade de Harvard, meu doutorado em antropologia social, fiquei sabendo da visita de um grupo de estudantes brasileiros. Eram lideres estudantis, convidados pelo Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos, que realizavam um programa de visitas a centros culturais norte-americanos e, em Harvard, participavam de seminários e debates.

Carente de noticias do país e de contato com compatriotas – aquela época, é bom lembrar, não havia e-mail, nem fax, nem sedex, os estudantes não podiam viajar tanto quanto hoje – , fui ao local da reunião.

Lá, em um vasto salão harvardiano, dois negros americanos, se não me engano, ambos políticos locais e ligados ao chamado Movimento Negro que estava surgindo, disseram dissertavam sobre suas experiências aos jovens lideres estudantis brasileiros. Lembro-me bem de que o objetivo dos políticos americanos era compartilhar, a partir da grande experiência liberal americana, as conquistas dos negros em relação ao establishment branco, mudando legislações e provocando, por meio de um ativismo pacifico, democrático e consistente, a integração política e judiciária dos Estados Unidos como nação e, no limite da esperança, como sociedade.

Ao término do discurso dos americanos, os estudantes brasileiros iniciaram uma série de perguntas-comentários provocadoras e um tanto impertinentes. Diziam, por exemplo, que as mudanças políticas mencionadas não eram efetivamente transformações de estrutura, que continuava fundada no mercado. Alegavam que a modificação aparente do quadro dos direitos das minorias não mudava o cerne do problema: a estrutura do capitalismo fundada na exploração do trabalho, continuava em vigor. Insinuavam, como era comum naquela década, que, para mudar as relações raciais, seria necessário primeiro modificar todo o “sistema” por meio de uma revolução .

Depois de cerca de trinta minutos de impasse ideológico, um dos palestrantes negros resolveu endurecer e disse mais ou menos o seguinte, olhando durante sua plateia de brasileiros:

Curioso que vocês cobrem tanto do nosso sistema. O fato é que estamos trabalhando com o que podemos para mudar as relações raciais por aqui. Vocês, que se dizem uma democracia racial, são muito piores, em termos práticos. Pois vejam só: no meio de mais ou menos oitenta estudantes brasileiros, eu vejo apenas sete ou oito negros. A maioria é branca. Onde está a tal “democracia racial” de vocês?

Após a reunião, fui me encontrar com o grupo e logo descobri a perturbação dos brasileiros diante do seguinte problema: quem era o negro que os americanos haviam descoberto entre eles? Pois, como me disse um dos estudantes, com exceção de uma ou duas pessoas, não havia preto “entre eles”…

Essa historia tem o mérito de revelar o coração do problema, pois situa com dramaticidade um fato social básico: como as sociedades classificam suas eventuais variedades étnicas.

DA MATTA, Roberto. Racismo à brasileira.


“A característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor da pele. Nessa escala, negro é o negro retinto, o mulato já é o pardo e como tal meio branco, e se a pele é um pouco mais clara, já passa a incorporar a comunidade branca. Acresce que aqui se registra, também, uma branquização puramente social ou cultural. É o caso dos negros que, ascendendo socialmente, com êxito notório, passam a integrar grupos de convivência dos brancos, a casar-se entre eles e, afinal, a serem tidos como brancos. A definição brasileira de negro não pode corresponder a um artista ou a um profissional exitoso. Exemplifica essa situação o diálogo de um artista negro, o pintor Santa Rosa, com um jovem, também negro, que lutava para ascender na carreira diplomática, queixando-se das imensas barreiras que dificultavam a ascensão das pessoas de cor. O pintor disse, muito comovido: “Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro”.

Já no século passado, um estrangeiro, estranhando ver um mulato no alto posto de capitão-mor, ouviu a seguinte explicação: “Sim, ele foi mestiço, mas como capitão-mor não pode deixar de ser branco” (Koster 1942: 480).

A forma peculiar do racismo brasileiro decorre de uma situação em que a mestiçagem não é punida mas louvada. Com efeito, as uniões inter-raciais, aqui, nunca foram tidas como crime nem pecado. Provavelmente porque o povoamento do Brasil não se deu por famílias europeias já formadas, cujas mulheres brancas combatessem todo o intercurso de mulheres de cor. Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras.

Essa situação não chega a configurar uma democracia racial, como quis Gilberto Freyre e muita gente mais, tamanha é a carga de opressão, preconceito e discriminação antinegro que ela encerra. Não o é também, obviamente, porque a própria expectativa de que o negro desapareça pela mestiçagem é um racismo. Mas o certo é que contrasta muito, e contrasta para melhor, com as formas de preconceito propriamente racial que conduzem ao apartheid.

É preciso reconhecer, entretanto, que o apartheid tem conteúdos de tolerância que aqui se ignoram. Quem afasta o alterno e o põe à distância maior possível, admite que ele conserve lá longe, sua identidade, continuando a ser ele mesmo.  Em consequência, induz à profunda solidariedade interna do grupo discriminado, o que o capacita a lutar claramente por seus direitos sem admitir paternalismos. Nas conjunturas assimilacionistas, ao contrário, se dilui a negritude numa vasta escala de gradações, que quebra a solidariedade, reduz a combatividade, insinuando a ideia de que a ordem social é uma ordem natural, senão sagrada.

O aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que ele dá de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a que é submetido. É de assinalar, porém, que a ideologia assimilacionista da chamada democracia racial afeta principalmente os intelectuais negros. Conduzindo-os a campanhas de conscientização do negro para a conciliação social e para o combate ao ódio e ao ressentimento do negro. Seu objetivo ilusório é criar condições de convivência em que o negro possa aproveitar as linhas de capilaridade social para ascender, através da adoção explícita das formas de conduta e de etiqueta dos brancos bem-sucedidos.

Cada negro de talento extraordinário realiza sua própria carreira, como a de Pelé, a de Pixinguinha ou a de Grande Otelo e inumeráveis outros esportistas e artistas, sem encontrar uma linguagem apropriada para a luta anti-racista. O assimilacionismo, como se vê, cria uma atmosfera de fluidez nas relações inter-raciais, mas dissuade o negro para sua luta específica, sem compreender que a vitória só é alcançável pela revolução social.

A Revolução Cubana veio demonstrar que os negros estão muito mais preparados do que se pode supor para ascender socialmente. Com efeito, alguns anos de escolaridade francamente aberta e de estímulo à auto-superação aumentaram, rapidamente, o contingente de negros que alcançaram os postos mais altos do governo, da sociedade e da cultura cubanas.”

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 225-226.

SAIBA MAIS

Almeida, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Polén, 2019.

Gonzalez, Lélia; Hasenbalg, Carlos A. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982

Nascimento, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1978.

Ribeiro, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. CIA das Letras: São Paulo, 2019.

Soares, Sara Parente Ferreira. Skin color and the risk of domestic violence in Brasil. Tese (Doutorado), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.

Ture, Kwame; Carmichael, Stokely; Hamilton, Charles V. Black power: The politics of liberation in America. Vintage, 1967.

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