O Debate Mitilênio

Tucídides. A História da Guerra do Peloponeso. III.36-49

Mitilene era a antiga capital da ilha de Lesbos e participante da Liga de Delos. Apesar de seu status privilegiado, era um estado tributário de Atenas, mas em 428 a.C., os mitilênios se revoltaram contra Atenas. Os mitilênios pediram auxílio aos inimigos de Atenas, Esparta. Apesar de sua infantaria legendária, Esparta não dominava o mar como Atenas. Sob cerco, a facção democrática em Mitilene decidiu desistir e forçar os oligarcas a entregar a cidade. Entretanto, os atenienses decretaram que todos os homens mitilênios adultos fossem mortos e escravisassem as mulheres e crianças.

No dia seguinte à decretação dessa ordem genocida, a assembleia ateniense se reúne para ponderar sobre a gravidade dessa medida. O demagogo Clêon insiste em manter a condenação, com seu discurso violento, anti-democrático e anti-intelectual. Seu oponente é Diôdotos filho de Eucrates, de quem pouco se sabe, salvo sua sabedoria eloquente nesse debate registrado por Tucídides em seu A História da Guerra do Peloponeso.

Outras questões são levantadas, como as limitações de um governo baseado na retórica como era a democracia ateniense, a compatibilidade entre a democracia e império, a pena de morte, a dissuasão, o papel das pessoas comuns nas decisões políticas,  a manipulação das massas pelo discurso político, a natureza humana, o Estado de direito e a retórica.

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A condenação dos mitilênios

[36] Quando Sáletos e os demais chegaram a Atenas, os atenienses mataram imediatamente Sáletos, apesar dele haver-se oferecido para, entre outras coisas, induzir os peloponésios a abandonar Plateia, que ainda estava sitiada. Quanto aos demais, houve debates, e sob o impulso da ira decidiram afinal matar não somente os mitilênios presentes em Atenas, mas também todos os adultos de Mitilene e escravizar suas mulheres e filhos. A acusação geral feita contra eles foi de se terem rebelado apesar de não estarem sob sujeição como os outros aliados; também contribuiu, e não pouco, para enfurecer os atenienses, o atrevimento das forças peloponésias de aventurar-se até a cos­ta da Iônia para ajudar os mitilênios, pois esta última circunstância os levou a pensar que a rebelião havia sido longamente premeditada.

Em seguida os atenienses despacharam uma trirreme para comunicar a Paques as decisões tomadas, ordenando-lhe que executasse os mitilênios o mais depressa possível.

No dia seguinte, todavia, começaram a sentir-se arrependidos, pois a reflexão os levou a considerar cruel e grave a sua decisão de destruir uma cidade inteira, em vez de atingir apenas os culpados. Quando os emissários dos mitilênios souberam disto, juntamente com seus partidários atenienses induziram as autoridades a reabrir a questão diante do povo; tiveram menos dificuldade em persuadi-las por ser evidente que a maior parte dos cidadãos desejava ter outra oportunidade para deliberar sobre o assunto. Realizou-se imediatamente uma assembleia, na qual foram emitidas opiniões antagônicas por vários oradores.

O discurso de Clêon

Um destes era Clêon filho de Cleênetos, que havia conseguido a aprovação da moção no sentido de serem mortos todos os mitilênios. Ele, que não era somente o mais violento dos cidadãos, mas também o mais ouvido pelo povo na ocasião, subiu à tribuna pela segunda vez e disse o seguinte:

[37]”Muitas vezes no passado senti que a democracia é incompatível com a direção de um império, mas nunca tanto quanto agora, ao observar a vossa mudança em relação aos mitilênios. Habituados entre vós na vida cotidiana a não temer nem intrigar, tendes a mesma atitude diante de vossos aliados, esquecidos de que, todas as vezes que sois induzidos em erros por seus representantes ou cedeis por piedade, vossa fraqueza vos expõe a perigos e não conquista a sua gratidão; sois incapazes de ver que vosso império é uma tirania imposta a súditos que, por seu turno, conspiram contra vós e se submetem ao vosso comando contra a sua vontade, e vos obedecem não por causa de alguma generosidade vossa para com eles em detrimento de vossos interesses, mas por causa de vossa ascendência sobre eles, resultante de vossa força e não de sua boa vontade.

O risco mais temível, todavia, seria a falta de firmeza em nossas decisões, e a incapacidade de ver que leis imperfeitas mas imutáveis tornam uma cidade mais forte que leis bem feitas mas sem autoridade. A ignorância combinada com a modéstia é mais útil que a astúcia unida ao atrevimento. Quase sempre as cidades são melhor governadas pelos homens simples que pelas inteligências mais sutis; estas, com efeito, querem sempre mostrar que são mais sábias que as leis e domi­nar os debates, como se nunca mais houvesse assuntos importantes a respeito dos quais pudessem exibir o seu talento, e com essa conduta geralmente levam a sua cidade à ruína; os homens que, ao contrário, não confiando em sua sutileza, contentam-se com saber menos que as leis e ser menos competentes que outros para criticar as palavras de um orador sagaz e, por serem mais juízes imparciais que contestadores interesseiros, geralmente são bem-sucedidos”.

Devemos portanto agir assim, em vez de nos excitarmos tanto com a eloquência e torneios de virtuosismo oratório a ponto de dar ao povo de Atenas conselhos contrários às nossas próprias convicções.

[38] “Eu, porém, mantenho a minha opinião e me admiro daqueles que propõem debater novamente a questão dos mitilênios e assim provocar delongas que só interessam aos culpados (a cólera do ofendido contra o ofensor vai-se amortecendo com o passar do tempo); quando a repressão segue imediatamente o ultraje são mantidas as proporções e a reparação é completa.

Admiro-me também daquele que me responderá e tentará provar que os crimes nos beneficiam, mas nossos infortúnios são prejudiciais aos nossos aliados. Evidentemente ele tem tanta confiança no poder de suas palavras que vai tentar demonstrar que vossa resolução unânime não foi aprovada, ou então, incitado pela cobiça, esforçar-se-á por achar palavras suficientemente especiosas para vos enganar.

Em torneios desse tipo a cidade concede os prêmios a outros, guardando para si apenas os riscos. E a culpa é vossa; sois maus organizadores desses torneios, pois preferis ser espectadores de palavras e ouvintes de fatos, decidindo sobre ações futuras de conformidade com a versão de hábeis oradores interessados em apresentá­-las como factíveis, e vendo fatos consumados à luz de críticas brilhantemente formuladas, dando assim mais crédito à versão que ao acontecimento visto com vossos próprios olhos.

Gostais não somente de ser enganados por propostas novas, mas também de negar-vos a seguir as já aprovadas, escravos que sois de toda a originalidade e desdenhosos da rotina. Cada um de vós deseja ser sobretudo orador ou, se não for possível, emular os oradores da mesma índole e, para não parecer menos ágil de inteligência, aplaudir uma tirada sutil antes dela sair dos lábios do orador; sois tão rápidos para correr na frente das palavras quanto sois lentos para prever as suas consequências. Procurais, por assim dizer, um mundo diferente do nosso, e sois inca­pazes de vos interessar pela realidade. Numa palavra, fascinados pelo prazer de ouvir, pareceis mais alunos dos sofistas que homens deliberando sobre os interesses da cidade.

[39]”Esforço-me por desviar-vos desse procedimento, mostrando-vos que os mitilênios vos fizeram mais mal que qualquer outra cidade isoladamente. Posso ser tolerante com homens que recorrem à rebelião por serem incapazes de suportar o vosso domínio, ou por serem coagidos por vossos inimigos a agir assim, mas quanto a homens que habitam uma ilha fortificada e não temem nossos inimigos senão por mar, e mesmo sob esse aspecto nunca ficaram sem a proteção da força de suas próprias trirremes, e que além disso se governam por suas próprias leis e eram tratados por nós com a mais alta consideração, pergunto: tal conduta não constitui uma conspira­ção, mais uma rebeldia que uma revolta – pois revolta é recurso de quem sofre opressão – e uma tentativa deliberada de passar para o lado de nossos piores inimigos com o objetivo de causar a nossa destruição?

Isto é certamente mais grave do que se eles nos houvessem declarado guerra a fim de aumentar o seu poder. As desgraças de seus vizinhos que se revoltaram contra nós e foram dominados não lhes serviram de advertência, nem a felicidade que gozaram até agora os fez recuar diante do perigo; ao contrário, tornando-se demasiadamente confiantes no futuro e nutrindo esperanças que, embora maiores que suas forças, eram menores que sua ambição, empunharam armas, querendo pôr a força acima do direito, pois no momento em que se consideraram capazes de vencer atacaram-nos sem ser provocados.

Realmente, as cidades inesperadamente prósperas tendem ao orgulho; em geral o cálculo, mais que o imprevisto, dá solidez ao sucesso e, para dizer tudo, é mais fácil afastar a adversidade que manter a prosperidade. Desde o começo os mitilênios nunca deveriam ter sido tratados por nós com mais consideração que os outros aliados; assim jamais teriam demonstrado tanta insolência, pois é próprio dos homens em qualquer caso desprezar a consideração e admirar o rigor.

Castigai-os, portanto, enquanto é tempo, de maneira compatível com seu crime, e não culpeis os aristocratas absolvendo o povo, pois todos vos atacaram, e se o povo houvesse pendido para o nosso lado agora estaria sendo reconduzido ao poder; mas o povo pensou que havia menos risco em compartilhar o perigo com a minoria e se juntou a ela na rebelião. Pensai além disto em vossos aliados; se não infligirdes àqueles que se revoltam espontaneamente um castigo maior que a quem se rebela sob compulsão de nossos inimigos, qual deles não se revoltará sob o míni­mo pretexto, se as alternativas forem a liberdade, em caso de sucesso, ou, em caso de fracasso, nada sofrer de irreparável? Nós, de nosso lado, arriscaremos nosso dinheiro e nossas vidas contra cada cidade, e se formos bem-sucedidos recuperaremos uma cidade arruinada e seremos privados no futuro de seus tributos, fonte de nossa força; se fracassarmos, estaremos acrescentando novos inimigos aos que já temos, e estaremos consumindo em guerras contra nossos próprios aliados o tempo que deveríamos dedicar à luta contra nossos inimigos atuais.

[40] “Não devemos deixar-lhes qualquer esperança, seja fundada na eloquência, seja comprada com dinheiro, de que serão perdoados porque seu erro foi humano. Na verdade, seu ato não foi um ultraje involuntário, mas uma conspiração deliberada, e a indulgência só se aplica ao ato involuntário. Insisto, portanto, como tenho feito desde o princípio, em que não haja uma reversão em nossa decisão anterior, e em que não vos deixeis levar pelos três sentimentos mais nocivos a quem exerce o império: a compaixão, o encanto da eloquência e a clemência. A compaixão pode ser estendida aos que também a sentem, mas nunca àqueles que não mostrarão piedade por seu turno e serão inevitavelmente inimigos constantes.

Quanto aos oradores que encantam com sua eloquência, terão outras oportunidades de exibi-la em assuntos menos importantes, e não quando a cidade pagará por um prazer efêmero um alto preço enquanto eles ganham um bom salário por suas falas agradáveis. E será melhor reservar a clemência para os que no futuro se mostrarem aliados fiéis, em vez de usá-la com quem continua a ser o que sempre foi, ou seja inimigo.

Direi numa palavra: se aceitardes meu conselho, fareis não somente justiça aos mitilênios, mas também, e ao mesmo tempo, o que nos convém; se decidirdes de outra maneira, não obtereis a sua gratidão mas, ao contrário, estareis decretando a vossa própria condenação, pois se este povo tinha o direito de rebelar-se, não poderíeis exercer o império. Se, porém, com ou sem razão ainda estais resolvidos a exercê-lo, então deveis punir este povo mesmo contra a equidade, apenas por vosso interesse; ou devereis desistir do império e viver sem riscos como homens virtuosos. Cumpre-nos puni-los com a mesma penalidade que eles nos teriam infligido, para que aqueles que escaparam da conjuração não pareçam ter menos sentimento que os seus autores, sem perder de vista aquilo que provavelmente vos teriam feito se vitoriosos, especialmente por terem sido os agressores. Quando se ataca sem motivo deve-se ir até as últimas consequências; haveria perigo em deixar o inimigo de pé, pois a vítima ofendida gratuitamente é mais temível, se consegue escapar, do que no caso de as faltas dos dois lados se equivalerem.

Não sejais traidores de vossa própria causa; recordando tão nitidamente quanto possível os vossos sentimentos quando eles vos fizeram sofrer e como teríeis dado tudo para esmagá-los, vingai-vos hoje sem fraquejar. Não vos torneis compassivos diante de sua desgraça presente, nem esqueçais o perigo que até há tão pouco tempo esteve pendente sobre vossas cabeças, mas castigai-os como merecem; isto servirá de advertência clara aos outros aliados no sentido de que os rebelados serão punidos com a morte. Se eles se convencerem disto, não tereis de abandonar tão freqüentemente a luta contra o inimigo para combater os vossos próprios aliados”.

O discurso de Diôdotos

[41] Assim falou Clêon. Depois dele Diôdotos filho de Êucrates, que na assembléia anterior havia sido o principal orador contra a condenação dos mitilênios à morte, subiu também à tribuna e disse o seguinte:

[42] “Não reprovo os proponentes da reconsideração no caso dos mitilênios, nem elogio os que se opõem a um segundo debate sobre assuntos da maior importância, pois os dois obstáculos mais contrários a uma deliberação sensata são a pressa e a paixão; com efeito, uma anda geralmente em companhia da leviandade, e a outra da obsessão e estreiteza de espírito.

Quanto às palavras, quem sustenta que elas não guiam nossas ações, é ignorante ou defende algum interesse pessoal- ignorante se crê que existe outro meio de lançar luz sobre a incerteza do futuro; defensor de interesses pessoais se, desejando impingir uma proposta desonesta e não podendo falar bem de uma causa má, consegue ao menos caluniar bem e assim intimidar seus opositores e ouvintes.

Os mais perigosos são exatamente os que acusam antecipadamente um orador de estar subornado, apenas para fazer uma exibição de retórica. Se lhe imputassem somente ignorância, o orador incapaz de convencer os seus ouvintes poderia ir embora com a reputação de tolo, mas não de desonesto; quando, porém, a acusação é de desonestidade, o orador bem-sucedido se torna suspeito, e o fracassado além de tolo será indigno. Tudo isto é prejudicial à cidade, privada de seus conselheiros pelo temor. Ela seria mais próspera se seus cidadãos desse tipo não tivessem a mínima eloquência, pois assim o povo estaria menos sujeito a errar sob sua influência; mas o bom cidadão deve mostrar-se um orador melhor, não através de ameaças aos seus opositores, mas usando os melhores argumentos; uma cidade sábia, sem negar ao melhor conselheiro as honras mereci­das, não deverá exagerá-las; em vez de impor uma penalidade ao orador vencido, não deveria sequer tratá-lo desrespeitosamente. Dessa forma seria menos provável que um orador vitorioso, levado pelo desejo de ser distinguido com honras ainda maiores, falasse insinceramente apenas para agradar, e que o orador vencido usasse os mesmos meios, cortejando o povo para conquistá-lo.

[43] “Nós fazemos exatamente o contrário. Mas isto não é tudo; diante de simples suspeitas de que um orador seja corrupto, ainda que seus conselhos sejam excelentes desconfiamos de uma venalidade imaginária e assim privamos a cidade de vantagens reais. A situação chegou a tal ponto que as melhores idéias, francamente emitidas, são vistas com tanta suspeita quanto as piores. O resultado é que não somente o autor das propostas mais perigosas é obrigado a recorrer a artifícios para convencer a multidão, mas também o conselho mais útil necessita da mentira para tornar-se aceitável. Com esta sutileza excessiva, nossa cidade é a única à qual não se pode servir abertamente e sem enganá-la. Quem lhe apresenta francamente uma proposta favorável logo se torna suspeito de buscar secretamente algum benefício pessoal muito grande. Diante de tais disposições, e quando se trata de nossos interesses mais importantes, cumpre-nos, a nós, oradores, ver um pouco mais longe que vós, cujo tempo dedicado ao exame dos assuntos públicos é curto; somos responsáveis por nossas opiniões e vós não o sois por vossos votos”, Se ao menos o autor de um projeto e quem o aprova corressem os mesmos riscos, vossas decisões seriam mais razoáveis; com efeito, em caso de maus resultados vós cedeis ao primeiro impulso e punis aquele que tinha apenas a sua própria opinião, ao invés de vos punir a vós mesmos, ou seja à multidão que compartilhou o erro.

[44] “Quanto a mim, não vim falar a respeito dos mitilênios para contradizer ou acusar seja quem for, pois, considerando sensatamente as coisas, não se trata de sua culpa, mas do melhor partido a tomar em relação a nós mesmos. Posso demonstrar que eles são plenamente culpados sem todavia reclamar a sua morte, se isso não nos traz vantagens; da mesma forma, só os perdoaria na medida em que o bem da cidade o exigisse. Considero nosso dever deliberar mais sobre o futuro que sobre o presente.

Clêon afir­ma que a pena máxima será útil no porvir, porque diminuirá as defecções, mas a consideração de nossos interesses futuros me conduz a uma conclusão inteiramente contrária. Não vos deixeis levar pela capciosidade de seus argumentos para repelir o que há de útil nos meus. Seu discurso, influenciado por vossa cólera contra os mitilênios, pode atrair-vos; não nos cabe agora, todavia, processá-los nem pesar a justeza de sua conduta, mas deliberar sobre eles para determinar a conduta que os tornará mais úteis a nós.

[45]. “Na maior parte das cidades a pena de morte é cominada contra vários delitos, alguns dos quais estão longe de comparar-se em gravidade com o crime dos mitilênios. A esperança, porém, induz os homens a enfrentar o risco, e ninguém se expõe a ele admitindo o fracasso de seus planos; quanto às cidades, qual delas, pensando em revoltar-se, deu o passo decisivo na crença de que os recursos disponíveis, seja próprios, seja de aliados, seriam insuficientes para o sucesso? Todos os homens estão por natureza sujeitos a errar, seja na vida privada, seja na pública, e não há lei que os afaste disso, mesmo percorrendo sucessivamente toda a escala de penas, agravando-as incessantemente para reforçar a proteção contra os delinquentes. Provavelmente elas eram outrora mais suaves para os crimes mais graves; como, porém, ainda eram afrontadas, com o tempo chegaram em sua maioria à pena de morte, mas mesmo esta é afrontada. É preciso, então, descobrir um sistema melhor de intimidação, ou ao menos devemos concluir que a pena de morte não previne coisa alguma.

Na verdade, tudo leva o homem a desafiar o perigo; a pobreza inspira a temeridade pela necessidade; a riqueza, pela jactância incontida da opulência; e as várias outras paixões humanas por forças igualmente irreprimíveis atuando sobre cada um nas diversas situações em que se encontram. Também a esperança e o desejo estão em toda parte; o desejo conduz, a esperança segue; o desejo inspira os planos, a esperança promete os favores da sorte; os dois causam males terríveis, e sendo invisíveis, mostram-se mais fortes que os perigos visíveis. A sorte, juntando-se a outros fatores, não é incentivo menor; às vezes ela surge inesperadamente e induz os homens ao perigo, mesmo sem recursos adequados; isto se aplica sobretudo às cidades, porque no caso delas estão em jogo os mais altos interesses – a liberdade, o império – e cada cidadão, vendo que todos pensam como ele, superestima irracionalmente sua própria força.

Em poucas palavras, é absurdo e seria a maior ingenuidade crer que a natureza humana, quando se engaja afoitamente em uma ação, possa ser contida pela força da lei ou por qualquer outra ameaça na pena de morte, a ponto de tomar uma decisão errada, ou levar nossos súditos rebelados a crer que não terão oportunidade de arrepender-se e reparar seu erro o mais depressa possível.

Considerai que, no estágio atual dos acontecimentos, quando uma cidade rebelada se vê impossibilitada de resistir, capitula ainda em condições de reembolsar gastos de guerra e de pagar tributos no futuro; na outra hipótese, todavia, credes que haveria uma só que não fizesse os maiores preparativos e não se defendesse até o último extremo, se não houvesse diferença alguma entre uma rápida submissão e uma resistência desesperada? E quanto perderíamos se tivéssemos de fazer, com enormes gastos, o cerco de uma cidade decidida a não se render ou, se a tomássemos, por encontrá-la arruinada, privando-nos para sempre dos tributos que nos pagava? E são esses tributos que sustentam nosso poder!

Abstenhamo-nos, pois, de fazer mal a nós mesmos punindo culpados com severidade extrema. Procuremos, antes, deixar às cidades dominadas recursos pecuniários suficientes para ajudar-nos, graças a punições moderadas. Fundamentemos nossa segurança não na rigidez de nossas leis, mas no cuidado com nossos atos. Atualmente fazemos o inverso: se um povo antes livre, forçado a sujeitar-se ao nosso império, tenta revoltar-se – como é natural- e nós conseguimos dominá-lo, julgamo-nos obrigados a puni-los severamente. Não deveríamos castigar severamente homens livres que se revoltam, mas vigiá-los com rigor antes da tentativa, a fim de impedi-los até de pensar nisto ou, se tentarem, reduzir ao mínimo a extensão das responsabilidades após vencê-los.

47. “Considerai ainda o enorme erro que cometeríeis seguindo a opinião de Clêon. N o momento, em todas as cidades o povo simpatiza convosco; ele não adere às rebeliões dos aristocratas ou, se é constrangido a fazê-lo, não tarda a voltar-se contra quem os compeliu; por isto tendes o auxílio das camadas populares nas cidades onde ides combater. Mas se destruirdes o povo de Mitilene, que não participou da rebelião e logo que obteve armas se apressou em vos abrir as portas da cidade, primeiro cometereis uma injustiça imolando benfeitores, e depois estareis fazendo o que os aristocratas mais desejam: quando quiserem sublevar uma cidade, o povo estará ao seu lado, pois tereis mostrado que a mesma punição espera os inocentes e os culpados. Mesmo que o povo fosse culpado, ainda assim deveríamos dar a impressão de não perceber, a fim de que a única classe ainda nossa aliada não se nos torne hostil. Enfim, creio ser muito mais vantajoso para a preservação de nosso império suportarmos pacientemente uma ofensa do que aniquilar, embora justamente, homens cuja sobrevivência nos interessa. Apesar de Clêon pretender que essa punição combina a justiça com a conveni­ ência, não parece possível juntá-las neste caso. 48. “Reconhecei, então, a superioridade de minha proposta, e sem muitas concessões à piedade ou à clemência, contra as quais eu vos preveniria, ouvi os meus conselhos e acreditai em mim. Condenai ponderadamente os mitilênios trazidos por Paques como traidores e deixai os outros em seus lares. Este é o procedimento mais sábio com vistas ao futuro, e o que no presente causará mais alarme aos nossos inimigos. Resoluções prudentes têm mais efeito contra os adversários que atos irracionais de força.”

Conclusão do debate o destino de Mitilene

[49]. Assim falou Diôdotos. Depois de emitidas essas opiniões antagô­nicas e equipolentes, os atenienses continuaram indecisos e os votos se dividiram quase ao meio, mas prevaleceu afinal a opinião de Diôdotos.

Foi mandada imediatamente para Mitilene uma segunda trirreme a plena velocidade, na esperança de que a primeira, saída um dia e uma noite antes, não chegasse na frente, e de que a cidade não fosse aniquilada. Os emissários mitilênios que estavam em Atenas forneceram vinho e farinha de cevada à tripulação, e lhe prometeram uma grande recompensa se chegassem a tempo; a pressa foi tanta que durante a viagem os homens não paravam de remar enquanto comiam os pães de cevada molhados em vinho e óleo, e se revezavam para remar e dormir. Como por sorte não houve ventos contrá­rios e a nau anterior não tinha pressa, viajando naquela missão sinistra, enquanto a segunda se esforçava da maneira descrita acima, a primeira chegou só um pouco antes, dando a Paques apenas tempo para ler o decreto e preparar-se para executar as ordens; a segunda chegou logo após e impediu a destruição da cidade.

Assim Mitilene escapou ao perigo por esse curto lapso de tempo.

[50]. Os outros homens que Paques havia mandado a Atenas como principais autores da rebelião, totalizando mais de mil, foram mortos pelos atenienses de acordo com uma moção apresentada por Clêon. Os atenienses também destruíram as muralhas de Mitilene e se apossaram de sua frota. Depois, em vez de impor um tributo aos lésbios, dividiram todas as terras, exceto as dos metimneus, em três mil lotes e, reservando trezentos deles como consagrados aos deuses, mandaram colonos atenienses, escolhidos por sorteio, para ocupar os restantes. Os lésbios fizeram um acordo com eles segundo o qual lhes pagariam uma renda de duas minas por ano por cada lote e continuariam a cultivar a terra. Os atenienses também se apossaram de todas as terras ocupadas pelos mitilênios no continente, que daí em diante passaram a fazer parte de seu império. Foram estes os acontecimentos em Lesbos. 


TUCÍDIDES. A História da Guerra do Peloponeso. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001.

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