Dicotomias para melhorar o raciocínio

racionio críticoAlgumas dicotomias são verdadeiras ferramentas para o bem pensar.  Concebidas pela filosofia para uso na lógica, epistemologia e ontologia, elas elucidam o método científico, o raciocínio crítico e outros campos da vida. Constituem meios de raciocinar de forma clara e coerente, além de prevenir e remediar falácias.

A PRIORI E A POSTERIORI

Conhecida desde Euclides, Kant consagrou essa distinção para formas ou justificação do conhecimento relacionando-as com a experiência e razão.

  • A priori: conhecimentos ou juízos independentes de experiência sensorial, sendo inferido da razão somente. Por exemplo, 2×4=8.
  • A posteriori: conhecimentos ou juízos que dependem de experiência sensorial para serem validados. Por exemplo, a declaração “a maçã está na mesa da cozinha” só pode ser validada após verificar se de fato a maçã estiver na mesa da cozinha.

QUALIDADE E QUANTIDADE

Parece bobo, mas alguém teve que conceituar essa diferenciação. Embora os gregos já utilizassem essa dicotomia como categorias dos seres, o romano Cícero propôs essa diferenciação analítica.

  • Quantidade: são os atributos mensuráveis de alguma coisa. Exemplos: massa e gradiente de cor de uma cereja.
  • Qualidade: são os atributos inerentes de alguma coisa. Exemplo: o sabor da cereja.

Em termos práticos, posso conhecer quantitativamente a taxa de desemprego de uma dada população e até correlacioná-las com outras variáveis, mas para conhecer como é o desemprego preciso lançar mão de métodos qualitativos (quem são, como interpretam suas condições e quais fatores afetam os desempregados). Ao combinar esses dois métodos, é possível formular possíveis causas.

ANÁLISE E SÍNTESE

Outro método da lógica aristotélica, a análise e síntese tornam questões complexas em simples.

  • Análise: seria dividir o Todo em pedaços menores para melhor estudá-lo. Um método clássico de análise é utilizar taxonomias, por exemplo,  as categorias ou classes de Aristóteles: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, estado, hábito, ação e paixão. Por exemplo, A maçã (ente) é (acidentes) fruta, de 100g, da macieira, encontrada no pomar, no outono, empilhada, madura, caindo para ser comida.
  • Síntese: é reunir ao menos dois elementos em um conjunto comum.  A criação de modelos, resumos, categorizações serve para aplicar a síntese. Por exemplo, uma sinopse de um livro: A Odisseia conta as aventuras da viagem do rei grego Ulisses à Ítaca após a guerra de Troia.

CLASSIFICAR E CATEGORIZAR

Parece ser uma diferenciação pernóstica, mas queira ou não, há diferenças nesses modos de taxonomias.

  • Categorizar: ordenar ou dividir fenômenos em conjuntos cujos atributos possuem alguma forma de similaridade. Por exemplo, um mesmo conjunto de livros pode ser ordenado por critérios de cores, títulos em ordem alfabética, ano de publicação e outros parâmetros que o ordenador estabelecer. As cores da pele são categorias clinais, ou seja, o tom e cor da pele são arbitrariamente categorizado em diferentes “cores, raças ou etnias”. A mesma amplitude de ondas de som é categorizada em diferentes escalas, como a pentafônica e a dodecafônica.
  • Classificar: ordenar ou dividir fenômenos de acordo com parâmetros pré-estabelecidos que um elemento só possa ser classificado como pertencente a uma única classe se adotado o mesmo critério sempre. A Classificação Decimal de Dewey e a Classificação Decimal Universal para livros, a taxonomia biológica de Lineu, os signos do zodíaco são exemplo de classificações discretas.

ANALOGIA E EXEMPLO

Ambas são ferramentas explicativas que apelam a ilustrações com elementos do universo comum dos interlocutores.

  • Analogia: é apresentar algo semelhante para ilustrar uma definição ou conceito. Planetas são corpos astronômicos sem luz própria que gravitam ao redor de uma estrela. Um planeta é como uma pedra ou uma bexiga ao redor de uma lâmpada.
  • Exemplo: é apresentar algo representativo para ilustrar uma definição ou conceito. Planetas são corpos astronômicos sem luz própria que gravitam ao redor de uma estrela. A Terra, Vênus, Júpiter são planetas do sistema solar.

DEFINIÇÃO E CONCEITO

São meios de delimitar objetos de inquirição.

  • Definições: redução verbal ou matemática que especifica um objeto, diferenciando-o dos demais. Um triângulo equilátero possui três lados iguais.
  • Conceitos: são descrições de um fenômeno e se esperam que fenômenos semelhantes caibam dentro do conjunto descrito pelo conceito. A pobreza é a escassez geral, carência, ou o estado de uma pessoa que carece de certa quantidade de bens materiais ou dinheiro.

COMPARAÇÃO E CONTRASTE

Um modo de estabelecer definições e conceitos é comparar similaridade ou contrastar diferenças.

  • Comparação: buscar elementos comuns entre dois conjuntos. Katheryn Elizabeth Hudson e Katheryn Elizabeth Hudson são duas celebridades homônimas nascidas na Califórnia.
  • Contraste: salientar elementos  diferentes entre dois conjuntos. Uma Katheryn Elizabeth Hudson é atriz e usa o nome Kate Hudson, a outra Katheryn Elizabeth Hudson é cantora e usa o nome Katy Perry.

HIPÓTESE E TEORIA

Essas abstrações não são dados empíricos, mas ideias para se aplicarem às generalizações.

  • Hipótese: é um modelo que propõe uma relação de causa e efeito ou correlação entre diversos elementos. A hipótese de que o mecanismo de Anticítera seja um computador analógico para observações astronômicas é plausível.
  • Teoria: é uma explanação descritiva, interpretativa ou normativa de um fenômeno ou de uma própria teoria com bases justificadas. A teoria mecânica de Newton descreve e prevê o movimento dos corpos fundamentado em três leis (da inércia, da força e da ação-reação).

Ao contrário do que muitos pensam, hipótese, teoria e lei científica não são gradientes de certeza do conhecimento. Uma lei científica é uma teoria (uma representação) tal como uma hipótese também é uma teoria se for justificada epistemologicamente, mas ainda faltando algo para sua plena justificação.

CONDIÇÕES NECESSÁRIA E SUFICIENTE

Servem para operações lógicos nas análises causais. NB: há quem use o termo CONTINGENTE como sinônimo para suficiente.

  • Condição Necessária: uma proposição que seria ou verdadeira ou falsa, mas sem ela, uma ação não pode ocorrer. É uma condição necessária para a chuva ter baixa pressão atmosférica. Entretanto, é uma condição necessária, mas não suficiente, pois pode cair a pressão e não chover.
  • Condição Suficiente: uma proposição não seria necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa, mas depende de sua relação conectiva com outra proposição. Sem ela, uma ação pode ou não ocorrer. É uma condição suficiente que a alta umidade do ar levar a chover. É uma condição suficiente, mas não necessária, pois a umidade pode se precipitar também na forma de neblina, granizo e neve.

PROPRIEDADES ESSENCIAL E ACIDENTAL

Uma vez em mente as condições necessárias e suficientes, outra distinção lógica é bem importante:

  • Propriedade Essencial: qualquer propriedade de alguma coisa que se alterada, muda fundamentalmente esse objeto. É uma propriedade essencial de os vegetarianos não comerem carne.
  • Propriedade Acidental: são propriedades que podem ser mudadas sem afetar a existência do objeto. É uma propriedade acidental de os vegetarianos comerem somente frutas ou exclusivamente legumes.

FUNÇÃO E PROPÓSITO

Essa confusão é bem comum. Para ilustrar, vamos usar o martelo do filósofo Martin Heiddger.

  • Propósito: o objetivo designado para algum objeto. O martelo serve para martelar pregos e quebrar coisas.
  • Função: Os diferentes usos de um objeto além de seu propósito. O martelo serve como peso de papel, como símbolo em uma bandeira ou como arma letal.

CORRELAÇÃO E CAUSA

Uma relação bem confusa mesmo para cientistas experientes e largamente abusada por manipuladores de opinião. Para elucidar o que é causa, vale conhecer a teoria das quatro causas de Aristóteles.

  • Correlação: a alteração em uma variável afeta outras variáveis. O aumento do número de carros circulando é correlacionado ao número de motoristas habilitados.
  • Causa: uma correlação especial de causa e efeito. A ação de uma variável resulta em um efeito necessário em outra variável. O aumento do número de carros circulando resulta do aumento da produção automobilística.

NAVALHAS DE OCCAM E DE HUME

Para quê complicar se podemos simplificar. Algumas normas heurísticas exemplificam o princípio da parcimônia nos raciocínios explicativos:

  • Navalha de Occam: Os elementos das explicações não devem ser multiplicados além do necessário.
  • Navalha de Hume:  Se a causa atribuída a qualquer efeito não for suficiente para explicá-lo completamente, devemos rejeitar a causa ou incrementá-la com variáveis que providenciem uma maior explanação ao efeito.

GUILHOTINA DE HUME

Falando no mestre do empirismo escocês, a distinção entre ser e dever ser (is-ought problem) ou também chamada de Lei de Hume é importante para construir (e falsear) argumentos levando em conta fatores contigentes e necessários.

  • Ser: são elementos descritivos, “reais”, factuais, as coisas como as temos, funcionando na lógica do que é dado, sujeitos à juízos de veracidade.
  • Dever-ser: são elementos normativos, “ideais”, valorativos, as coisas como as desejamos, funcionando na lógica da probabilidade, sujeitos à juízos de valor.

O uso de dicotomias ou opostos galgou o status de método de raciocínio com Pierre de la Ramée ou Pedro Ramus (1515 – 1572). Esse pensandor francês separou a lógica da retórica (em termos aristotélicos) e apregoava a distinção entre o particular e o geral. Ao argumentar que a verdade seria apreendida não comparando entre distintas teorias, mas entre teoria e evidência, lançou bases para as ciências modernas.

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