Já se perguntou o porquê de cada cidade ter sua rua Machado de Assis, Avenida Tiradentes, Praça Getúlio Vargas, Via Sete de Setembro?
Não é porque o logradouro em questão foi feito por tal pessoa (exceto talvez o caso do engenheiro Regis Bittencourt, fazedor de pontes e rodovias) ou que foi inaugurado naquela data.
No Brasil os logradouros municipais – ruas, avenidas, praças, rodovias, bairros – frequentemente recebem nomes próprios cuja análise revelam muito da identidade da nação.
Embora logradouros nomeados com números e letras sejam os mais comuns, [1] há nomes recorrentes em quase todas as cidades brasileiras. Os nomes típicos de alguns logradouros são tão inócuos, apesar de bem intencionados: Avenida Brasil, Jardim das Flores, Rua Ipê, Bela Vista, Boa Vista, Bonsucesso, Rua Projetada, Praça da Paz. Nomes assim indicariam ideiais de uma nacionalidade comum, coisas por fazer ou ordenar (letras e números) e aspirações (paz, flores, sucesso).
Entretanto, os nomes com conotações significativas servem para indicar um pouco sobre o Brasil.
O antropólogo Roberto DaMatta observa a dictomia casa/rua na mentalidade e organização sociocultural brasileira[2]. Se a casa é o local da privacidade, da pessoa, do lazer; a rua é o local público, do indivíduo, das obrigações como o trabalho.
São nas ruas, largos e praças que ocorrem tanto as procissões católicas (e suas versões evangélicas, as marchas para Jesus) quanto as paradas gays; rituais de ordem em forma de desfiles cívicos e militares, como também rituais de inversão como é o carnaval. Esses espaços públicos foram tomados por manifestações de todos os tipos de orientações políticas: Marcha dos 100 mil, Marcha da Família com Deus pela Liberdade, Diretas Já, o Fora Collor, as Jornadas de Junho, e por aí vai.
A escolha de nomes para esses logradouros pode parecer arbitrária, mas não é. A prevalência dos mesmos nomes para homenagear “heróis públicos” – categoria que vai desde inventores como Santos Dumont à mãe de político – em diferentes municípios revela um viés daqueles que escolhem os nomes, normalmente planejadores urbanos, vereadores e prefeitos.
Aqui estão os nomes mais comuns e seus significados:
POLÍTICOS
Getúlio Vargas: o pai dos pobres e mãe dos ricos. Nosso querido ditador.
Expedicionários da Pátria: ou a variante, Voluntários da Pátria, remetem aos coitados que se alistaram (ou foram enganjados contra a vontade, que ironia) na Guerra do Paraguai.
Osório: pode-se referir tanto ao militar Manuel Luís Osório (1808 — 1879) ou ao poeta Osório Duque-Estrada (1870 — 1927, autor da letra do Hino Nacional Brasileiro.
Duque de Caxias: outro homenageado dentro da temática militar. Repressor de movimentos regionais e populares, como também político e envolvido nas guerras brabas com os hermanos platinos.
Juscelino Kubitschek: construtor de Brasília, um ambicioso que andava de fusca e queria um Brasil desenvolvido de cinquenta anos em cinco.
D.Pedro (I, II): o barba negra e mais jovem (o primeiro) fez a independência, enquanto o velhinho sósia do Papai Noel é o segundo e reinou no Brasil por quase meio século.
Princesa Isabel: como regente imperial, foi a primeira mulher a governar o Brasil, aproveitando a oportunidade para assinar a Lei Áurea que acabou com a escravidão.
Floriano Peixoto: o marechal de ferro que consolidou a república e mandou fuzilar o Policarpo Quaresma.
Deodoro da Fonseca: marechal com cara de cansado que foi o primeiro presidente da república que ele mesmo proclamou e depois se demitiu.
Tiradentes: barbeiro, arranca-dentes, alferes (segundo-tenente) e muleteiro mineirim. Se deu mal quando quis botar os portugueses para correr.
Avenida Ipiranga: nome largo para um riacho estreito. Remete à independência do Brasil, momento grandioso mas só assistido por alguns militares e um boiadeiro (segundo o quadro de Pedro Américo) que provavelmente achou que aquele sinhozinho estava variando das ideias.
Quintino Bocaiúva: político típico do século XIX. Maçom, formou-se em direito, escreveu para jornais, eleito senador, foi ministro, envolveu-se na proclamação da república, mas ninguém lembra hoje quem foi.
Kennedy: interessante ver um presidente norte-americano homenageado no Brasil. Já vi também alguns Roosevelts, mas nenhum Lincoln, e dos Washington, só o Luís.
ESCRITORES
Castro Alves: poeta baiano que deu tiro no pé enquanto pensava em suas espumas flutuantes.
Machado de Assis: autodidata que enfrentou o preconceito (era mulato) e tornou-se barnabé e um dos maiores escritores da língua portuguesa. Esse merece as homenagens que recebe.
Rui Barbosa: jurista excelente, político mediano, financista não lá tão bom.
DATAS
7 de Setembro: dia quando a elite brasileira aposentou o monarca português e tomou ela mesma conta do poder.
15 de Novembro: dia quando a elite brasileira aposentou o monarca brasileiro e tomou ela mesma conta do poder.
13 de Maio: dia quando a elite brasileira aposentou os escravos e recontratou-os em troca de casa e comida, mas desta vez junto com algum paesani italiano, alemães colonos, nikkeijin japoneses, além de meeiros e agregados.
9 de Julho: coisa de paulistano, meu. Essa malfadada data lembra a (malfadada) revolução de 1932.
Primeiro de Maio: Dia da Folga.
SANTOS
São José: carpinteiro e pai de Jesus.
São Paulo: pode ser a cidade, o estado, o time ou o difusor do cristianismo.
São Pedro: porteiro do céu e primeiro papa para o catolicismo romano.
São João: o batista, o evangelista ou o padroeiro das quadrilhas de festas juninas?
São Francisco: o popular místico medieval. Homem simples e amigo dos animais.
São Sebastião: mártir que serviu como alvo para flechas.
Santa Luzia: mártir siciliana venerada no catolicismo como patrona dos olhos.
São Jorge: caçador de dragão, rebaixado pelo papa Paulo VI em 1969 e re-promovido a santo pelo papa João Paulo II em 2000.
Santa Maria: mãe de Jesus.
Sao Luiz: rei da França. Difícil imaginar a razão de sua popularidade no Brasil.
Santa Rita: padroeira das rosas, abelhas e das mulheres abusadas.
Santo Antônio: nunca casou, mas garantem que ajuda a arranjar casamento.
Desta amostra dos nomes mais comuns, podemos pensar que no espaço público brasileiro são celebrados eventos e pessoas que dominam esse próprio espaço. A repetição de datas marcantes (com notável ausência do dia do descobrimento), políticos (poucas mulheres aí lembradas), santos católicos, alguns poucos escritores através das fronteiras municipais revela quem domina o imaginário público. Datas e pessoas que forjaram o estado nacional, bem como pessoas da devoção popular, reforçam dentro das fronteiras do país uma identidade comum.
[1] Estadão: O nome mais comum de ruas do país é um numeral Contém uma lista dos 100 nomes mais comuns de ruas no Brasil. [LINK FORA DO AR]
[2] DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984
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