A Reflexões sobre a Revolução em França (no original, Reflections on the Revolution in France), publicado em novembro de 1790 pelo estadista e filósofo político anglo-irlandês Edmund Burke, é uma das mais conhecidas e influentes críticas intelectuais à Revolução Francesa. Escrita em forma de uma longa carta destinada a um jovem cavalheiro em Paris, Charles-Jean-François Depont, a obra tornou-se um texto fundamental do conservadorismo moderno.
Estrutura da Obra
Embora apresentada como uma carta, a obra de Burke não segue uma estrutura rigidamente formalizada com capítulos ou secções claramente divididas no original. No entanto, o seu fluxo argumentativo pode ser delineado em várias partes principais que se entrelaçam:
- Introdução e Contexto: Burke começa por responder ao pedido de Depont para conhecer as suas opiniões sobre a Revolução. Ele expressa as suas apreensões e estabelece o tom cético que permeará toda a obra, contrastando a sua visão de liberdade com a que percebe emergir em França. A famosa citação, “Amo uma liberdade viril, moral e regulada” (I love a manly, moral, regulated liberty), encapsula a sua posição desde o início.
- Crítica aos Princípios Revolucionários: Burke ataca veementemente os fundamentos filosóficos da Revolução, especialmente a sua base nos direitos abstratos do homem, que ele considera metafísicos e perigosamente desligados da realidade concreta e das tradições.
- Defesa da Constituição Britânica e da Tradição: Em contraste com a abordagem francesa, Burke exalta a constituição britânica como um modelo de desenvolvimento orgânico e de liberdades herdadas e transmitidas através das gerações. Ele valoriza o preconceito, a tradição e a propriedade como elementos essenciais para a estabilidade social e a verdadeira liberdade.
- Análise dos Eventos em França: Burke examina criticamente as ações da Assembleia Nacional, a confiscação dos bens da Igreja, a reestruturação do exército e do sistema financeiro, e o tratamento dispensado à família real, especialmente à Rainha Maria Antonieta.
- Consequências Previstas da Revolução: Ele prognostica que a abordagem radical dos revolucionários levará à anarquia, à tirania e, eventualmente, ao surgimento de um líder militar que imporá a ordem pela força.
- A Natureza da Sociedade e do Governo: Burke expõe a sua filosofia política, argumentando que a sociedade é um contrato complexo entre as gerações passadas, presentes e futuras, e que o governo é uma construção da sabedoria humana para prover às necessidades humanas, o que inclui o controle das paixões.
Profundidade Crítica e Principais Argumentos
A profundidade crítica de “Reflexões” manifesta-se na sua análise penetrante das dinâmicas revolucionárias e na sua articulação de uma filosofia política conservadora coesa:
- Ceticismo em Relação à Razão Abstrata: Burke critica a confiança excessiva dos revolucionários na razão abstrata e nos “direitos do homem” desligados da experiência histórica e das circunstâncias concretas. Para ele, a política é uma ciência prática e experimental, não um exercício de dedução a partir de primeiros princípios.
- Valor da Tradição e da Prescrição: Ele defende que as instituições, costumes e preconceitos herdados (no sentido de julgamentos prévios e testados pelo tempo) são repositórios de sabedoria acumulada e essenciais para a coesão social e a liberdade ordenada. A mudança deve ser gradual e reformista, não revolucionária e destrutiva.
- A Liberdade Ordenada: A liberdade, para Burke, não é a ausência de restrições, mas uma liberdade “viril, moral e regulada”, gozada dentro da estrutura da lei, da ordem social, da moralidade e da religião. Liberdade sem sabedoria e sem virtude é “o maior de todos os males”.
- A Sociedade como um Organismo: Ele vê a sociedade como um organismo vivo e complexo, um contrato entre os vivos, os mortos e os que estão por nascer. As tentativas de redesenhar radicalmente a sociedade com base em teorias abstratas ignoram esta continuidade e a sua natureza orgânica.
- Importância da Propriedade e da Religião: Burke considera a propriedade privada e as instituições religiosas (como a Igreja estabelecida) pilares da estabilidade social e da moralidade pública. A confiscação dos bens da Igreja em França é vista por ele como um ataque perigoso a estes fundamentos.
- Crítica à Composição da Assembleia Nacional: Ele desdenha a falta de experiência política e de “propriedade” (no sentido amplo, incluindo status e interesse investido na estabilidade) dos membros da Assembleia Nacional, dominada, na sua visão, por advogados e especuladores ambiciosos e inexperientes.
- Perigos da Democracia Pura: Burke expressa receios quanto à democracia desenfreada, que teme poder levar à tirania da maioria e à destruição das minorias e das elites naturais.
Recepção
A publicação de “Reflexões sobre a Revolução em França” causou uma “sensação” imediata e polarizadora:
- Apoiantes: Foi amplamente aclamada por conservadores, monarquistas e críticos da Revolução em toda a Europa, que viram na obra uma defesa eloquente da ordem estabelecida e uma profecia precisa dos perigos do radicalismo. O Rei Jorge III teria recomendado a obra como “um bom livro, um livro muito bom; todo cavalheiro deveria lê-lo”.
- Críticos: Provocou respostas veementes de apoiantes da Revolução e defensores dos direitos humanos. As mais famosas são “Direitos do Homem” (Rights of Man) de Thomas Paine (1791-1792) e “Uma Reivindicação dos Direitos da Mulher” (A Vindication of the Rights of Woman) de Mary Wollstonecraft (1792), que também escreveu “Uma Reivindicação dos Direitos dos Homens” (1790) em resposta direta a Burke. Estes autores acusaram Burke de defender a tirania, de ignorar o sofrimento do povo francês sob o Antigo Regime e de ser insensível às aspirações por liberdade e igualdade.
- Impacto Duradouro: Apesar das críticas, a obra de Burke solidificou a sua reputação como um dos principais pensadores políticos. As suas ideias moldaram profundamente o desenvolvimento do pensamento conservador e continuam a ser debatidas e invocadas em discussões políticas contemporâneas sobre a natureza da liberdade, da tradição, da reforma e da revolução. O livro vendeu cerca de 30.000 cópias nos primeiros dois anos, um número extraordinário para a época.
Historial Editorial
- Publicação Original: Publicada por James Dodsley em Pall Mall, Londres, em novembro de 1790. O texto original tem cerca de 97.900 palavras.
- Edições Subsequentes e Traduções: Dada a sua popularidade e impacto, a obra passou por múltiplas edições rapidamente. Foi traduzida para o francês já em 1790 por Pierre-Gaëton Dupont (a quem a carta original era, na verdade, dirigida, embora Burke o tenha ocultado publicamente por razões políticas, dedicando-a a um “jovem cavalheiro em Paris” anónimo). Seguiram-se traduções para o alemão e outras línguas europeias.
- Edições Abreviadas e Modernas: Ao longo dos séculos, surgiram diversas edições, incluindo versões abreviadas (como a mencionada edição de Sir John Hammerton, que serviu de base para a versão “squashed” que você partilhou) e edições académicas com introduções e notas críticas. A edição da Oxford World’s Classics (ISBN 0199539022, mencionada no seu texto) é um exemplo de uma edição moderna acessível.
- Em Português: “Reflexões sobre a Revolução em França” foi traduzido para o português e conta com edições tanto no Brasil (por exemplo, pela Topbooks ou pela Edipro) quanto em Portugal, permitindo o acesso direto à obra pelos leitores lusófonos.
O autor
Edmund Burke (1729-1797) foi um filósofo e político irlandês, formado no Trinity College. Publicou obras filosóficas notáveis, incluindo “Inquérito filosófico sobre a origem das ideias de sublime e beleza”, que influenciou Kant. Como parlamentar britânico, destacou-se por sua oposição à ocupação da Índia, à discriminação contra católicos e à política tributária inglesa nas colônias americanas, que levou à independência dos EUA. Sua obra “Reflexões sobre a revolução na França” (1790) criticou a Revolução Francesa, consolidando-o como uma figura pioneira do conservadorismo político, apesar de suas origens liberais (whig). Também contribuiu para a teoria da representação política.

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