Galileu e o movimento da Terra

“…E ainda ela se move”. O embante entre cabeças-dura, uns fundados no dogmatismo, outros na confiança da apreensão empírica, foi a emancipação custosa do pensamento científico. No meio disso, Galileu Galilei.

Galileu Galilei, nascido em Pisa em 1564 numa família de músicos, transcendeu suas origens artísticas para se tornar um filósofo, matemático, astrônomo e físico pioneiro, a quem Albert Einstein reverenciaria como o “Pai da Ciência Moderna”. Desde a infância, com a construção de brinquedos mecânicos, até a juventude, com a descoberta das propriedades isócronas do pêndulo e a invenção da balança hidrostática, Galileu foi mestre com um intelecto inquisitivo e prático. Sua obra magna, Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo (1632), vai além de um tratado astronômico, sendo uma luta pela liberdade do pensamento científico envolta da questão central: “a Terra se move?”.

O palco para este debate crucial era uma Europa onde o modelo geocêntrico de Ptolomeu, fundamentado na física de Aristóteles, reinava supremo por séculos. Este sistema colocava a Terra imóvel no centro do universo, com o Sol, a Lua e os planetas girando ao seu redor em esferas cristalinas. Contra essa visão estabelecida, emergia o sistema heliocêntrico de Nicolau Copérnico, que propunha um Sol central com a Terra e os demais planetas orbitando-o. O Diálogo de Galileu se desenrola como uma conversa espirituosa e perspicaz ao longo de quatro dias, entre três personagens: Salviati, um defensor eloquente e sagaz do sistema copernicano, representando a voz do próprio Galileu; Simplício, um filósofo aristotélico tradicionalista, cujo nome evoca uma certa ingenuidade, defendendo o modelo ptolomaico; e Sagredo, um nobre veneziano inteligente e imparcial, ávido por compreender a verdade através da razão e da evidência. Embora ostensivamente discutindo os “dois sistemas” cosmológicos, o subtexto do Diálogo era mais profundo: um confronto entre a autoridade dogmática da Igreja Católica e o emergente método científico baseado na observação e na razão.

No decorrer da obra, Salviati metodicamente descontrói os argumentos geocêntricos e apresenta as evidências em favor do heliocentrismo. Ele começa questionando a própria premissa de que a Terra deve estar no centro do universo, argumentando que, se o universo é esférico e se move, seu centro deveria ser inferido a partir do movimento dos corpos celestes, e não assumido a priori. As observações, muitas delas potencializadas pelo telescópio que Galileu aperfeiçoara, forneciam munição poderosa. Salviati destaca as variações drásticas nas distâncias e no brilho aparente de planetas como Vênus e Marte em relação à Terra, inconsistentes com órbitas centradas na Terra. As fases de Vênus, semelhantes às da Lua – uma descoberta telescópica crucial de Galileu – indicavam inequivocamente que Vênus orbitava o Sol. Da mesma forma, Mercúrio nunca se afastava muito do Sol no céu, sugerindo uma órbita solar. Os planetas superiores – Marte, Júpiter e Saturno – apareciam mais próximos e brilhantes quando em oposição ao Sol (com a Terra entre eles e o Sol), e mais distantes quando em conjunção, um comportamento facilmente explicado se orbitassem o Sol, e não a Terra. Mesmo a Lua, que de fato orbita a Terra, não refutava o sistema: Salviati argumentava que a Terra, juntamente com sua Lua, realizava uma revolução anual em torno do Sol. O modelo heliocêntrico, portanto, não apenas se alinhava melhor com as observações, mas também oferecia uma explicação mais simples e harmoniosa para os movimentos celestes, incluindo a rotação diária da Terra para explicar o movimento aparente dos céus e o repouso das estrelas fixas, vistas como outros sóis distantes.

Galileu, através de Salviati, não se furta a apresentar as objeções ao sistema copernicano, muitas delas admitidas pelo próprio Copérnico, como a aparente falta de variação significativa no tamanho de Marte ou a ausência de fases visíveis de Vênus a olho nu. É aqui que a superioridade do método científico, implicitamente armado com novas ferramentas como o telescópio, se revela. Salviati demonstra como essas “dificuldades” eram, na verdade, resolvidas ou explicadas por observações mais apuradas ou por uma compreensão mais profunda da física. Ele expressa profunda admiração por pensadores como Aristarco de Samos e Copérnico, que, com a força de seus intelectos, ousaram “cometer tal estupro contra seus próprios sentidos”, preferindo o que a razão afirmava ao que a experiência sensível imediata manifestava. A resistência à nova cosmologia, para Salviati, devia-se em grande parte à teimosia dos “crânios grossos” e à dificuldade de superar o senso comum e as aparências superficiais.

Publicado com a aparente aprovação papal (embora esta viesse com ressalvas), o Diálogo foi percebido por muitos, incluindo o Papa Urbano VIII, que antes fora patrono de Galileu, como um ataque direto não apenas à ciência aristotélica, mas à autoridade intelectual da Igreja Católica. Galileu já havia entrado em conflito com as autoridades católicas em 1613 ao declarar, numa carta à Grã-Duquesa Cristina, que a Bíblia ensina como ir para o céu, não como os céus vão. O Diálogo reacendeu essa tensão. Convocado pela Inquisição Romana, Galileu foi julgado “veementemente suspeito de heresia” em 1633, forçado a abjurar suas convicções heliocêntricas, sentenciado a recitar salmos penitenciais e a passar o resto de sua vida em prisão domiciliar. Seus livros, incluindo quaisquer futuros escritos, foram proibidos.

Apesar da condenação e da supressão, o Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo e o legado de Galileu foram imensuráveis. A obra, mesmo proibida (só em 1835 a Igreja Católica permitiria oficialmente sua leitura), circulou e inspirou gerações de cientistas. Mais do que um debate sobre se a Terra se move, o Diálogo é um testamento à primazia da observação, da experimentação e da razão matemática na busca pela compreensão do universo. A coragem intelectual de Galileu em desafiar dogmas estabelecidos e sua insistência no método empírico solidificaram sua posição como uma figura central da Revolução Científica e como o verdadeiro “Pai da Ciência Moderna”.

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