Solidão epistêmica: o saber conectado ainda que incompartilhável

Na mitologia grega, Cassandra sofria dessa solidão: amaldiçoada com o dom da profecia, ninguém lhe dava ouvidos ou créditos para suas desgraças antevistas.

 Caspar David Friedrich. Der Wanderer über dem Nebelmeer, óleo sobre tela, 1818.

Caspar David Friedrich. Der Wanderer über dem Nebelmeer, óleo sobre tela, 1818.

Solidão é um fenômeno psicológico complexo, normalmente escrutinado em suas dimensões social e emocional. Contudo, existe uma forma de isolamento que não se resolve meramente com companhia, mas exige reconhecimento e validação. O filósofo Ramón Alvarado (2025) aponta para um tipo de sofrimento específico: a solidão epistêmica, o incômodo que surge quando falhamos em encontrar parceiros para compartilhar, trocar e criar conhecimento.

Enquanto vivemos em um paradoxo de profusão de informações e processamentos de dados, talvez seja ainda maior o fenômeno da solidão epistêmica. É um problema silencioso e tão fundamental à nossa capacidade de saber e de ser.

Entendendo a solidão epistêmica

A solidão epistêmica relaciona-se à nossa capacidade como agentes do conhecimento. Conforme argumenta Alvarado (2025), essa solidão manifesta-se e afeta primariamente as dimensões de criação, acumulação e compartilhamento de conhecimento nas interações interpessoais. Não seria apenas a ausência de um amigo, mas a ausência de um interlocutor qualificado –- alguém capaz e disposto a engajar-se na nossa realidade epistêmica.

O ser humano é um animal gregário e epistêmico. A busca por coerência interna e externa –- tão central à dissonância cognitiva -– depende da capacidade de nomear e validar a própria experiência em diálogo com o mundo. Quando essa realidade é sistematicamente rejeitada, o indivíduo é deixado num estado de crise de conhecimento e conexão.

Embora o termo não seja totalmente novo na filosofia (remontando a autores como McGraw 1995 e Chandler 1975), a formulação de Alvarado busca identificar a solidão epistêmica como uma instância específica e relevante que não se limita a grupos politicamente marginalizados, nem trivializa o conceito ao torná-lo um estado existencial inevitável.

Distinções cruciais: cognitivo versus epistêmico

É bom distinguir o aspecto epistêmico do puramente cognitivo, embora sejam conceitos coextensivos. O nível cognitivo está ligado aos processos cerebrais, neurais e biológicos do conhecimento. O nível epistêmico diz respeito ao conteúdo, à justificação, à validade e ao compartilhamento desse conhecimento no contexto social (ALVARADO, 2023).

Um professor pode ensinar algo (dimensão epistêmica) sem necessariamente alterar a estrutura neurológica do aluno (dimensão cognitiva), e vice-versa.

A solidão epistêmica surge, portanto, não de um déficit cognitivo individual, mas da falha de reciprocidade na relação de conhecimento. Uma pessoa pode ter todas as capacidades e desejos de se conectar (sendo “hiper-social”), mas sentir-se isolada se os outros forem incapazes ou indispostos a reciprocá-la no nível do conhecimento. A solidão reside, nesse caso, na incapacidade do outro de se relacionar.

Manifestações da solidão epistêmica

A solidão epistêmica se manifesta sempre que há uma barreira intransponível para o compartilhamento de uma realidade particular. Tomemos alguns exemplos

  1. A solidão do especialista: o cientista, o filósofo ou o hobbyista com um foco hiper-especializado (como o indivíduo autista em seu interesse especial) pode vivenciar o paradoxo do “especialista máximo”. O auge da expertise se torna um estado de solidão intelectual, pois não há pares para desafiar, validar ou construir sobre o seu conhecimento de nicho. O interlocutor, nesse caso, existe em princípio, mas é inexistente na prática.
  2. O isolamento da experiência traumática: é vivido por obreviventes de traumas, situações de ameaças à vida, abusos ou torturas que não são posto sob os holofotes. Essas pessoas requentemente utilizam referências internas (como números tatuados) para se reconhecerem mutuamente. Essa solidariedade tácita é um antídoto contra a solidão epistêmica, que surge quando a enormidade do seu conhecimento experiencial é incompreensível ou minimizada por aqueles que não vivenciaram o horror -– um caso de diferença de conhecimento tão vasta que a realidade se torna incomunicável.
  3. A barreira linguística ou conceitual: a incapacidade de formular ou mesmo compreender um conceito – como no caso do último falante de uma língua – ou a distância cognitiva entre um baleia e um humano sobre a A Arte da Fuga de Bach, ilustra a lacuna epistêmica. A solidão advém da constatação de que o nosso universo de referência, o nosso “tecido de significado”, não possui co-habitantes.

É importante considerar que essa solidão não é necessariamente o mesmo que injustiça epistêmica (FRICKER, 2007) –- embora possa coexistir. Enquanto a injustiça epistêmica é um dano (uma desqualificação do status do indivíduo como agente do conhecimento), a solidão epistêmica é uma ausência dolorosa: a falta de uma oportunidade desejável e atingível para o engajamento epistêmico.

Mitigando a solidão epistêmica

Dirigir uma pessoa solitária para “reformar a estrutura sociopolítica” ou o “sistema educacional” para resolver sua solidão seria, na melhor das hipóteses, um conselho equivocado. A solidão epistêmica não se resolve com uma ampla reforma social, mas com a busca focada por interlocutores (como escrever em blogs para um diminuto público com condições iguais de compreendê-lo, hehehehe).

O foco da solução recai na procura por parceiros epistêmicos — indivíduos que, mesmo que diferentes em suas capacidades, são capazes e dispostos a colaborar e engajar-se ativamente no nosso conhecimento.

O antídoto à solidão epistêmica não é apenas a presença física, mas a presença epistêmica: a certeza de que a nossa realidade e o nosso conhecimento sobre ela são visíveis, compartilháveis e válidos para pelo menos um Outro.

SAIBA MAIS

ALVARADO, Ramón. What is epistemic loneliness? Synthese 204: 158. https://doi.org/10.1007/s11229-025-04993-w

ALVARADO, Ramón. AI as an epistemic technology. Science and Engineering Ethics, v. 29, n. 5, p. 32, 2023.

CHANDLER, Michael J. “Relativism and the problem of epistemological loneliness.” Human Development 18.3 (1975): 171-180.

FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford University Press, 2007.

MCGRAW, John G. Loneliness, its nature and forms: An existential perspective. Man and World, v. 28, p. 43–64, 1995.

RAJRAH. Simple Developing a framework of epistemic loneliness. University of Oxford Politics Blog. Disponível em: https://blog.politics.ox.ac.uk/developing-a-framework-of-epistemic-loneliness/. Acesso em: 12 out. 2025.

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