Ludvig Fabritius chegou acorrentado a Isfahan. O calor da Pérsia do século XVII lembrava sua terra nativa, Brasil. Esperto, pôs-se a vender remédios, mesmo sem falar a língua (e tampouco a medicina ou a farmacologia). Logo compraria sua alforria e viraria um diplomata a serviço da Suécia. Pouco conhecido pela historiografia brasileira, este personagem pícaro ligou diversos países em uma carreira curiosa, com altos e baixos.
Nascido como Lodewyck Fabritius em 14 de setembro de 1648, em algum ponto do Brasil holandês, sua vida é um registro da transnacionalidade antes mesmo do conceito existir. O menino nordestino seria um explorador da Eurásia, um ex-escravizado, um oficial do exército russo, um diplomata sueco e uma figura central nas relações entre a Suécia e o Império Safávida.
As missões de Fabritius, entre 1679 e 1700, podem ser compreendidas em três temas essenciais. Primeiro, a disputa por rotas comerciais e competição econômica, evidenciada na disputa entre Suécia, Rússia e Holanda pelo comércio de trânsito entre a Pérsia e a Europa. Segundo, as alianças diplomáticas e a política da Liga Santa, que destacam as tentativas suecas, embora malsucedidas, de atrair a Pérsia para uma coalizão anti-Otomana. Terceiro, a atuação dos mercadores armênios, mostrando como suas redes diaspóricas moldaram o comércio euro-asiático no início da era moderna. Ao traçar as negociações de Fabritius, percebemos como interações localizadas — uma carta de um mercador armênio, uma audiência com o xá safávida atrasada por motivos astrológicos — refletem as grandes lutas por poder da época.
Fabritius: um agente transnacional
A infância de Ludvig Fabritius acompanhou a instabilidade geopolítica da época. Nascido no Brasil holandês em 1648, era filho de um médico formado em Leiden que fugiu da Holanda para escapar dos espanhóis. Sua mãe viúva, casou-se com um oficial de artilharia. Ainda na adolescência, migrou para o czarado da Rússia em 1660, onde morava seu padastro, depois que Portugal retomou a colônia em 1654.
Sua carreira inicial como oficial militar russo não deu muito certo. Estourou as revoltas como a de Stenka Razin (1667–1671), a qual Fabritius enfrentou. Capturado em 1665, acabou em um período de cativeiro nas mãos de rebeldes cossacos. Foi arrematado em um leilão de escravizados em Tarku por um senhor tártaro. Mercadores indianos o compraram e trouxeram para o Irã. Depois, foi vendido em 1668 a um comerciante na Pérsia.
Sem dinheiro, junto de dois outros holandeses, se passavam por médicos e farmacêuticos, vendendo “remédios” aos persas. Com o charlatanismo, conseguiram levantar algum fundo. Fabrício seria redimido em 6 de junho de 1669.
Na época, a Europa ocidental e setentrional tinha acabado por passar pela Guerra dos Trinta Anos (1618–1648) e ainda vivia as guerras Otomano-Habsburgos (1526-1791). Após recusar uma posição na Companhia Holandesa das Índias Orientais em Isfahan, Fabritius mudou-se para a Suécia em 1677. O país nórdico era, então, uma potência báltica em ascensão sob Carlos XI.
A Suécia o escolheu por várias razões. Sua fluência linguística e cultural, familiaridade com o holandês, russo, persa e, provavelmente, as redes comerciais armênias, o tornavam um candidato ideal. Suas habilidades militares e diplomáticas, comprovadas por sua capacidade de sobreviver ao cativeiro em Astrakhan e Isfahan, atestavam sua adaptabilidade. Mais importante, suas conexões armênias eram vitais para as negociações comerciais, já que os mercadores de Julfa dominavam as exportações de seda da Pérsia.
Retrato de Fabritius, pelo seu compatriota, o sueco-holandês Martin Mijtens, o velho (1648- 1736).
A primeira missão (1679–1780): seda, Narva e o desvio russo
O objetivo sueco era claro: redirecionar o lucrativo comércio de seda persa da rota russa de Arkhangelsk para o porto sueco de Narva, contornando a concorrência holandesa e inglesa. Fabritius empreendeu sua primeira missão ao Império Safávida em 1679-80, uma empreitada que, segundo relatos, ele financiou em grande parte com recursos próprios, sugerindo um arranjo com os influentes mercadores armênios da Pérsia ou da Rússia. O sucesso de suas empreitadas dependia em grande parte da influência e do engajamento desses comerciantes.
As nuances dessa primeira viagem, embora pouco documentadas, revelam a complexidade das negociações. Fabritius chegou a Isfahan em 1680, mas só foi recebido em audiência pelo xá Suleiman I na primavera do ano seguinte. Suas propostas incluíam a permissão para mercadores iranianos entrarem em território sueco, isenção de impostos por dois anos e o compromisso sueco de construir navios no Mar Cáspio. O xá concordou em princípio, mas condicionou a implementação à aceitação dos mercadores armênios e outros comerciantes, uma indicação clara do poder e autonomia das redes comerciais da época.
Apesar da resposta formal e pouco comercial do xá, os mercadores armênios mostraram-se muito mais receptivos. Um deles chegou a expressar sua disposição em testar a rota Novgorod-Narva, e o magistrado (kalāntar) do bairro armênio de Julfa demonstrou interesse na cooperação para a construção de navios no Cáspio, prometendo incentivar outros armênios a utilizar a nova rota. Uma delegação de mercadores de seda de Julfa acompanhou Fabritius em seu retorno à Suécia em 1682, confirmando a importância dessa aliança informal. O resultado foi um sucesso parcial; na década de 1680, parte dos carregamentos de seda foi desviada para Narva, embora a Rússia continuasse dominante.
A resposta não-comprometedora do xá (“se os mercadores concordarem”) reflete a política comercial descentralizada safávida, contrastando com o mercantilismo europeu. A missão autofinanciada de Fabritius sugere o apoio privado armênio, destacando as redes informais que moldavam a diplomacia.
A segunda missão (1683–1684): a aposta da Liga Santa
A Suécia, sob o comando de Carlos XI, não hesitou em comissionar Fabritius para uma segunda missão. Iniciada em abril de 1683 e relativamente bem documentada, esta viagem tinha um objetivo ainda mais audacioso: persuadir a Pérsia a se juntar à Liga Santa, uma aliança europeia contra o Império Otomano, para abrir uma segunda frente contra os turcos. Fabritius chegou a Isfahan em março de 1684, acompanhado pelo erudito Engelbert Kaempfer, cujo diário oferece valiosos detalhes sobre a jornada. Novamente, o xá Suleiman I atrasou a audiência, em parte devido a conselhos astrológicos e, possivelmente, para observar as negociações safávidas com os holandeses, com quem estavam em conflito armado.
As discussões entre Fabritius e o xá revelaram diferentes perspectivas. A Suécia oferecia apoio militar contra os otomanos, mas o xá declinou o convite, baseando sua decisão em uma “inclinação pacifista” e uma avaliação realista da força de seu exército em comparação com os otomanos. Embora a aliança militar não tenha se concretizado, a missão resultou na abertura da rota de trânsito de Narva, e os mercadores de Julfa demonstraram grande interesse na rota. No final da década de 1680, com suas instalações logísticas e tarifas preferenciais, a rota de Narva havia se tornado uma séria concorrente da rota de Arkhangelsk.
A rivalidade armênio-holandesa na Pérsia, exemplificada pelo bloqueio holandês de Bandar Abbas, indiretamente beneficiou a Suécia. O pacifismo do xá contrasta com as narrativas europeias de “declínio” safávida; ele provavelmente evitou a guerra devido à instabilidade interna, não apenas à fraqueza. As anotações de Kaempfer revelam como os rituais da corte, trocas de presentes, meses de espera e audiências secretas, moldaram a diplomacia da época.
Vale considerar que a Rússia desapontava como ator regional com Pedro, o Grande (reinado 1682–1725) iniciando reformas para se aproximar da Europa. Isso levou à fundação de São Petersburgo em 1703, o qual seria uma concorrência para a cidade de Narva.
A terceira missão (1697–1700): o crepúsculo da ligação báltico-persa
No final da década de 1690, os mercadores armênios começaram a explorar rotas comerciais através da Comunidade Polaco-Lituana e da Curlândia, ameaçando a primazia de Narva. Para enfrentar essa nova realidade, Carlos XI enviou Fabritius em sua terceira e última missão em 1697. Seus objetivos incluíam assegurar direitos comerciais recíprocos para os suecos na Pérsia, taxas de pedágio mais baixas e um albergue para mercadores suecos em Isfahan, semelhante ao que acomodava armênios em Narva. A missão também incluía a notificação ao xá Sultan Husayn da ascensão de Carlos XII ao trono sueco e um pedido para que o czar russo Ivan V facilitasse direitos de trânsito livre para os mercadores suecos.
Fabritius então já não era mais um mero tenente-coronel. Em 1687 tinha sido enobrecido como cavalheiro pela monarquia sueca.
As informações sobre esta última missão são escassas. Fabritius partiu de Estocolmo em maio de 1697 e chegou a Isfahan em novembro de 1698. A comitiva era grande. Contava com 22 pessoas, inclusive o linguista Henrik Brenner, o qual escreveria um relato sobre a viagem.
Conseguiu que os persas enviassem uma embaixada à Suécia, e Saru Khan Beg o acompanhou em sua viagem de volta, chegando a Estocolmo em maio de 1700. Contudo, a deterioração das relações entre a Rússia e a Suécia, culminando na Grande Guerra do Norte em 1701, efetivamente encerrou as possibilidades de uma ligação comercial viável entre a Pérsia e a Suécia através dos domínios russos. Apesar disso, teve uma audiência com Pedro, o Grande.
O fracasso final de Fabritius espelha o declínio mais amplo da Suécia à medida que a Rússia ascendia. A visita do enviado safávida a Estocolmo em 1700 foi uma curiosidade diplomática, logo ofuscada pela guerra.
Retirou-se para o sul da Suécia, onde recebeu uma pensão pelos seus serviços (pensão por vezes retida). Cuidou de sua fazenda aos arredores de Estocolmo até sua morte em 1729.
Em análise
A história de Fabritius aponta que a política externa sueca era essencialmente econômica, não colonial. Atuou mais como um mercador-diplomata do que como um conquistador. As limitações das alianças tornaram-se evidentes: apesar de interesses anti-Otomanos compartilhados, a cautela safávida e as guerras europeias frustraram a cooperação. Por fim, a conexão armênia foi a ponte essencial; os mercadores diasporicos, não apenas os estados, possibilitaram o comércio e as interações eurasianas, como se pode ver nas parcerias de Fabritius com Julfa.
A trajetória de Ludvig Fabritius é um exemplo de transnacionalidade. Nascido no Brasil colonial de pais holandeses, ele se aventurou na Rússia, na Pérsia e, por fim, encontrou um lar diplomático na Suécia. Sua biografia que parece um conto picaresco, desde o serviço militar até o cativeiro e a diplomacia, forjou um indivíduo com uma compreensão singular das complexidades do comércio e das relações internacionais do século XVII.
Fabritius não era um mero emissário; sua história pessoal, marcada por migração, adaptação e a capacidade de forjar laços em culturas diversas, o tornou um agente transnacional por excelência. Sua “brasilianidade”, embora um ponto de origem distante de suas missões diplomáticas, ressoa como o ponto de partida de uma jornada que o levou a cruzar caminhos com impérios e povos.
O menino, provavelmente, recifense, viria a ser talvez o primeiro diplomata brasileiro a galgar centros de ponderes internacionais, o primeiro brasileiro a estabelecer-se na Pérsia, Rússia e Suécia. Sua biografia é uma lição de que a diplomacia pode galgar caminhos alternativos e aproximar povos.
SAIBA MAIS
Fontes primárias
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- Statskontoret (1683, 1684, 1687, 1690, 1694).
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