Cansado de ter de levar um comprovante de residência para abrir uma conta no banco, matricular seu filho na escola ou até mesmo para pegar um livro emprestado na biblioteca? Agora, pense naquele funcionário que, com uma caneta na mão e um carimbo na mesa, decide que o seu documento não está “adequado”. Talvez o boleto esteja no nome do seu cônjuge, ou a conta de luz no nome da sua mãe. E lá vai você, correndo atrás de uma nova papelada, enquanto o relógio avança e a paciência se esgota. O que está em jogo aqui não é a eficiência burocrática, mas o exercício de um poder pequeno, mesquinho e, muitas vezes, desproporcional.

A socióloga Heleieth Saffioti, cunhou o termo “Síndrome do Pequeno Poder” (abreviemos por SPP, porque Síndrome do P** Pequeno pode ferir o orgulho de machos inseguros) para descrever como figuras em posições de autoridade — muitas vezes insignificantes no grande esquema das coisas — usam seu mínimo controle para infligir humilhação, criar obstáculos e, acima de tudo, reafirmar sua própria importância. Esses pequenos déspotas estão em toda parte: no balcão do cartório, na fila do atendimento ao público, na portaria do prédio. Eles não têm o poder de mudar o mundo, mas têm o poder de tornar o seu dia um pouco pior.
Quem tem intenção de esconder onde mora, vai fraudar de qualquer jeito, desde um comprovante editado no Paint até declarar endereço falso. Ou seja, não é o papel que vai assegurar a veracidade do domicílio. Não bastaria pressupor boa-fé e confiar? É o que diz a Lei nº 7.115/83, que permite a autodeclaração de residência. Mas, infelizmente, a “lei não pegou”. A lei, em tese, deveria facilitar a vida do cidadão, mas na prática, ela se transforma em mais uma ferramenta para que o portador da Síndrome do Pequeno Poder exerça seu domínio. “Ah, mas a autodeclaração não tem validade legal”, dizem eles, como se um comprovante de conta de luz fosse a prova definitiva de que você não é um impostor.
O que está por trás dessa obsessão por comprovantes, carimbos e assinaturas? Não é a busca pela verdade ou pela segurança jurídica — é a necessidade de controlar, de impor barreiras, de lembrar aos outros que, por mais insignificante que seja, alguém tem o poder de dizer “não”. E é aí que reside a ironia: quanto menor o poder, maior a necessidade de exercê-lo.
E a SPP vai além das burocracias cotidianas. Nas relações de emprego, estudantil, familiar, religiosa, de gênero ou qualquer outra interação humana, sempre haverá uma pessoa amarga com SPP. É a necessidade de diminuir o Outro para se sentir melhor. É o chefe que pede coisas fora de suas funções ou que insiste em fazer reuniões que poderiam ser e-mails. É o professor que implica com as medidas das margens segundo as normas da ABNT e desconsidera que tais normas são para facilitar e não complicar a vida. É o cônjuge que espera a louça acumular por cinco minutos para cobrar limpeza. É o ministro religioso que quer ser temido, obedecido e paparicado como um ídolo. É o homem que chega em casa e grita a quemtrabalhou o dia inteiro em dupla jornada “Mulher! Traz cerveja!”.
O que está por trás da Síndrome do Pequeno Poder é a vontade de ferir a dignidade alheia.
Mas e se, em vez de nos submetermos a essa lógica absurda, começássemos a questioná-la? E se, ao invés de correr atrás de um novo comprovante, disséssemos: “Por que isso é necessário?” Não se trata de ser rebelde por ser rebelde, mas de recusar-se a participar de um jogo cujas regras foram feitas para nos desumanizar.
Heleieth Saffioti nos lembra que o poder, por menor que seja, só existe porque nós o legitimamos. Não se trata de culpar a vítima, mas a integração do indivíduo a um sistema que oprime. E é justamente aí que reside a possibilidade de resistência. Não precisamos de grandes gestos heroicos para desafiar a Síndrome do Pequeno Poder — basta nos recusarmos a aceitar suas regras absurdas. Pergunte, questione, exija explicações. E, se possível, faça isso com um sorriso no rosto. Afinal, nada desarma mais um pequeno tirano do que a constatação de que seu poder não é levado a sério.
No fim das contas, a opressão é como um castelo de areia: parece sólida, mas basta uma onda de questionamento para derrubá-la. E quem sabe, ao desafiar esses pequenos poderes, não estamos apenas tornando nossas vidas um pouco mais fáceis, mas também construindo um mundo onde a dignidade humana não precise ser comprovada com um carimbo.
Heleieth Saffioti (1934-2010) foi uma socióloga brasileira pioneira nos estudos de gênero no Brasil. Formada pela Universidade de São Paulo, onde também obteve seu doutorado, tornou-se professora na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Araraquara. Sua obra mais influente, A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade (Livraria Quatro Artes Editora, 1969), originalmente sua tese de livre-docência sob orientação de Florestan Fernandes em 1967, analisava a condição feminina sob a perspectiva marxista, articulando as opressões de classe, raça/etnia e gênero, o que posteriormente seria conhecido como interseccionalidade. Saffioti investigou a violência contra a mulher, o papel do trabalho e da família na reprodução das desigualdades, desafiando visões essencialistas e defendendo a emancipação feminina como parte da transformação social mais ampla. A partir do ponto de vista feminino (novamente, antecipando o conceito de lugar de fala), analisou os abusos cotidianos de poder com seu conceito de Síndrome do Pequeno Poder.
SAIBA MAIS
- Saffioti, Heleieth. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1987.
- Saffioti, Heleieth. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
- Foucault, Michel. Vigiar e Punir: Como o poder se exerce através das instituições.
- Goffman, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos: A dinâmica do poder nas instituições totais.
- Scott, James C. Weapons of the weak: Everyday forms of peasant resistance. Yale University Press (1985).
- O narcisismo das pequenas diferenças
