O tempo traz você para mim: leituras pós-modernas

Imagine acordar em um corpo que não é o seu, em um tempo que não é o seu, e descobrir que o rosto do seu amor perdido agora pertence a um estranho. Essa é a premissa de O Tempo Traz Você Para Mim, uma narrativa que entrelaça luto, memória e a fluidez do tempo. O dorama é tanto uma viagem emocional quanto uma reflexão filosófica sobre identidade, destino e as infinitas ramificações de nossas escolhas.

O dorama é uma adaptação coreana da série taiwanesa Someday or One Day. Raramente estórias de viagens no tempo ultrapassam os clichês e raramente narrativas pós-modernas ganham apelos públicos. Essa série da Netflix A Time Called You ( 너의 시간 속으로), em português O Tempo Traz Você pra Mim, escrita por Choi Hyo-bi e dirigida por Kim Jin-won conseguiu esse raro feito. Além disso, as atuações de Jeon Yeo-been e Ahn Hyo-seop são magistrais. Levei um tempo para perceber que a mesma atriz Jeon Yeo-been fazia os papeis de Han Jun-hee e de Kwon Min-joo.

A protagonista, Han Jun-hee, é uma mulher bem-sucedida de pouco mais de trinta anos na década de 2020, presa em um luto profundo pela morte recente de seu namorado, Ko Yeon-ju. Até que, em uma manhã qualquer, ela acorda no ano de 1998, habitando o corpo e a consciência de Kwon Min-joo, uma jovem tímida e insegura que parece ter pouco em comum com ela. O que poderia ser apenas um delírio passageiro se transforma em uma jornada labiríntica, onde Jun-hee se vê diante de um dilema: como viver uma vida que não é sua, em um tempo que não é o seu, enquanto tenta desvendar os fios que tecem sua própria história?

No centro dessa trama está Nam Si-heon, um colega de ensino médio que carrega o rosto de Yeon-ju. Para Jun-hee, ele é ao mesmo tempo uma lembrança dolorosa e uma possibilidade de redenção. Para Si-heon, a garota que ele pensa ser Min-joo é um enigma: alguém que parece ter mudado da noite para o dia, ganhando uma confiança e uma profundidade que ele não consegue decifrar. O que se desenrola entre eles não é apenas um romance, mas uma investigação sobre o que nos torna quem somos: nossas memórias, nossos corpos ou as escolhas que fazemos?

Aqui, o tempo não é linear, mas um rio que serpenteia, bifurca-se e, às vezes, transborda. Cada ação de Jun-hee no passado reverbera no futuro, alterando não apenas seu destino, mas também o daqueles ao seu redor. É como se o universo fosse um grande jardim de caminhos que se bifurcam, onde cada decisão abre novas possibilidades e fecha outras. E, no meio desse labirinto, Jun-hee descobre que sua jornada não é apenas sobre salvar a si mesma, mas sobre entender como o passado e o futuro estão inextricavelmente ligados.

Mas há um mistério ainda maior: a morte de Kwon Min-joo. Em uma crônica de morte anunciada, Jun-hee descobre que a jovem cujo corpo ela habita está destinada a morrer, e que o assassino ainda está à solta. Essa descoberta transforma a narrativa em um thriller psicológico, onde o passado não é apenas um lugar para se refugiar, mas um campo minado de segredos e perigos.

O que torna O Tempo Traz Você Para Mim tão fascinante é sua capacidade de operar em múltiplos níveis. Em um nível, é uma história de amor e luto, onde o tempo é tanto um aliado quanto um inimigo. Em outro, é uma meditação sobre identidade e agência, questionando se somos realmente donos de nossas vidas ou apenas passageiros em um trem cujo destino já foi traçado. E, em um terceiro nível, é uma crítica sutil às estruturas de poder que moldam nossas vidas, desde as expectativas sociais até as limitações impostas pelo gênero e pela classe.

No final, a jornada de Jun-hee não é apenas dela, mas emblemática da busca perpétua da humanidade por sentido em um universo que muitas vezes parece indiferente. Nos ecos do amor perdido, descobrimos que o tempo — não-linear, implacável e, talvez, mutável — é o mais cruel dos enigmas. E, no entanto, é também o que nos permite sonhar com a possibilidade de mudança, de redenção e, quem sabe, de um final feliz.

* * * Quer quiser spoilers, tem uma linha do tempo abaixo * * *


SAIBA MAIS

Appadurai, Arjun. 2004. Modernidade em Grande Escala: Dimensões Culturais da Globalização. Tradução de Heloísa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. (Original work published 1996).

Appiah, Kwame Anthony. 2007. Cosmopolitismo: Ética em um Mundo de Estranhos. Translated by Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras. (Original work published 2006).

Barthes, Roland. 1988. “A Morte do Autor.” In O Rumor da Língua, Tradução de Mário Laranjeira, 49-55. São Paulo: Martins Fontes. (Original work published 1967).

Baudrillard, Jean. 1991. Simulacros e Simulação. Tradução de Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio D’Água. (Original work published 1981).

Borges, Jorge Luis. 1999. “O Jardim de Veredas que se Bifurcam.” In Ficções, Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Globo. (Original work published 1941).

Braidotti, Rosi. 1994. Nomadic Subjects: Embodiment and Sexual Difference in Contemporary Feminist Theory. New York: Columbia University Press.

Deleuze, Gilles, and Félix Guattari. 1995. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34. (Original work published 1980).

Eco, Umberto. 1991. Os Limites da Interpretação.Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva. (Original work published 1990).

Foucault, Michel. 1987. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes.(Original work published 1975).

Goffman, Erving. 1985. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos. Petrópolis: Vozes. (Original work published 1959).

Hall, Stuart. 2000. “Identidade Cultural e Diáspora.” In Identidades: Comunidade, Cultura e Diferença, organzação de Jonathan Rutherford, Tradução de Tomaz Tadeu da Silva, 103-123. Rio de Janeiro: DP&A. (Original work published 1990 in Identity: Community, Culture, Difference).

hooks, bell. 2019. Eu Não Sou Uma Mulher? Mulheres Negras e Feminismo. Tradução de Bhuvi Libanio. Rio de Janeiro: Editora Elefante. (Original work published 1981).

Jameson, Fredric. 1996. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática. (Original work published 1991).

Taylor, Charles. 1997. As Fontes do Self: A Construção da Identidade Moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola. (Original work published 1989).


Linha do tempo

Linha do Tempo Presente (2023)

  • Início de 2023: Han Jun-hee lamenta a perda de seu namorado, Ko Yeon-ju.
  • Início de 2023: Jun-hee visita um local que guarda memórias especiais de Yeon-ju e, sem querer, ativa um fenômeno de viagem no tempo.
  • 2023 → 1998: Jun-hee se vê misteriosamente transportada para o ano de 1998.

Linha do Tempo Passada (1998)

  • Jun-hee, habitando o corpo de Min-joo, começa a navegar por sua nova vida como estudante do ensino médio.
  • Jun-hee conhece Nam Si-heon, um garoto que se parece muito com seu falecido namorado, Ko Yeon-ju.
  • À medida que Jun-hee passa mais tempo com Si-heon, ela começa a sentir uma conexão profunda com ele.
  • Si-heon mostra interesse crescente por Min-joo (Jun-hee disfarçada), mas percebe algo incomum em seu comportamento, o que o deixa intrigado.
  • Jun-hee tenta desvendar os mistérios do passado, aprendendo mais sobre a vida de Si-heon e descobrindo conexões com seu falecido namorado.
  • Jun-hee descobre ligações entre Si-heon e Yeon-ju, levando-a a perceber que os limites entre os dois mundos podem não ser tão separados quanto parecem.
  • Jun-hee enfrenta o conflito de viver no corpo de Min-joo, a atração emocional por Si-heon e a dor avassaladora de perder Yeon-ju.

Resolução (2023 / 1998)

  • Final de 2023 / 1998: Jun-hee enfrenta um momento decisivo em que deve escolher entre voltar para o presente ou ficar no passado.
  • Final de 2023 / 1998: Jun-hee reconcilia seu luto com o amor recém-descoberto, e as linhas do tempo começam a convergir.
  • Final de 2023: A série termina com um fechamento agridoce, deixando Jun-hee para navegar um futuro onde sua jornada emocional continua a evoluir.

4 comentários em “O tempo traz você para mim: leituras pós-modernas

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  1. Melhor resenha de série que já li. E essa série é muito boa mesmo. Vi o spoiler antes de assistir e mesmo assim passei a série toda igual ao meme da Nazaré 🤣

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  2. Não tenho o hábito de assistir doramas, mas lendo seu texto fiquei com vontade. Em breve vou reler o Baudrillard, será um ganho ter o seu texto na cabeça!

    Curtido por 1 pessoa

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