Imaginemos uma noite de verão em Buenos Aires. Você está jogando truco com os amigos, quando, de repente, a neve começa a cair. A surpresa inicial logo dá lugar ao terror: não é uma neve comum, mas um fenômeno letal. Cada floco que toca a pele apaga a vida, transformando a celebração em um pesadelo. Assim começa El Eternauta, uma das obras mais emblemáticas da ficção científica latino-americana.
Para lá de uma história em quadrinhos, El Eternauta, criação de Héctor Germán Oesterheld (1919-1977?), é uma metáfora sobre a condição humana em tempos de opressão. Publicada originalmente em 1957, com ilustrações de Francisco Solano López, a obra transcende o gênero da arte sequencial, tornando-se um manifesto político e social em protesto contr as ditaduras latino-americanas.
O Herói Anônimo: Juan Salvo
O protagonista, Juan Salvo, não é um herói convencional. Ele não possui superpoderes, não veste capa nem busca salvar o mundo. Em vez disso, é um homem comum, tentando proteger sua família e sobreviver a uma ameaça alienígena. Essa escolha narrativa reflete um ethos profundamente latino-americano, em que a resistência coletiva e a solidariedade são as verdadeiras formas de heroísmo. Oesterheld transforma o “homem anônimo” em uma figura central, um contraponto ao individualismo característico de muitos heróis ocidentais, principalmente nos quadrinhos ianques.
A força de Juan Salvo está em sua humanidade: no truco jogado com amigos, na busca desesperada para proteger os entes queridos e na luta pela sobrevivência em meio ao caos. Sua jornada é um retrato coletivo, uma visão utópica da solidariedade como resposta à desordem de um mundo fragmentado.
A Neve Mortal e a Desumanização
A trama de El Eternauta começa de forma aparentemente banal, com amigos reunidos em uma noite de verão nos subúrbios de Buenos Aires. No entanto, a neve que cai do céu é fatal, e a cidade rapidamente se transforma em um cenário pós-apocalíptico. A neve alienígena e o caos que a segue simbolizam a desumanização e repressão. Essa precipitação é uma das imagens mais impactantes da obra. Em um país como a Argentina, marcado pela violência estatal e desaparecimentos forçados, a ameaça invisível e onipresente se torna uma alegoria perturbadora das ditaduras.
Nesse contexto, Buenos Aires, uma cidade vibrante e cheia de vida, é reduzida a um campo de batalha. Os “Eles”, opressores invisíveis, comandam à distância, enquanto “as Mãos” e os autômatos humanos reforçam a alienação e a subjugação. O inimigo não apenas desumaniza, mas também anula a identidade, refletindo o controle totalitário.
Meio por acidente e por improviso, Juan Salvo a trancos e barrancos interfere na tecnologia alienígena que permite viajar no tempo. Daí seu encontro e relato ao personagem Oesterheld.

Oesterheld e o perigo de fazer quadrinhos
É impossível dissociar O Eternauta de seu autor. A vida de Héctor Germán Oesterheld encapsula o destino de uma geração inteira de intelectuais latino-americanos que ousaram desafiar o status quo.
Formado em geologia, logo trocou pedras por palavras. Em 1957, junto com seu irmão Jorge, fundou a Editorial Frontera, um marco na produção de quadrinhos na Argentina. Foi ali que Oesterheld e Solano López deram vida a O Eternauta, publicado originalmente em 106 episódios na revista Hora Cero Semanal.
Nos anos 1970, quando a Argentina mergulhou na escuridão da ditadura militar, Oesterheld ampliou o tom político de sua obra. Sua adesão à guerrilha dos Montoneros e a reescrita de O Eternauta em 1976, agora como uma crítica explícita ao regime, revelam a evolução de um autor que compreendeu que as palavras podem ser armas tão poderosas quanto balas. Escreveu uma biografia de Che Guevara (censurada e destruída pelo governo), além de uma crítica feroz à figura de Evita Perón. À medida que o país entrava no sombrio período das ditaduras militares, Héctor uniu-se à luta, ao lado de suas filhas, engajando-se no movimento Montoneros. Foi nesse contexto que O Eternauta II tomou forma, em 1976, uma obra ainda mais sombria, refletindo o horror de uma Argentina futurista sob regime ditatorial.
O preço dessa coragem foi devastador. Oesterheld desapareceu em 1977, vítima da repressão que também levou suas quatro filhas, duas delas grávidas, e três genros. Segundo relatos de sobreviventes que o encontraram nos centros de detenção, seus últimos momentos foram marcados por dignidade e coragem, como na trágica noite de Natal de 1977, quando fez questão de cumprimentar todos os companheiros de cela. Nunca mais foi visto.
Sua esposa, Elsa, recuperou o neto Martín, nascido em cativeiro, e tornou-se uma voz ativa nas Mães da Praça de Maio.
Já o ilustrador Francisco Solano López (1928–2011) nasceu em Buenos Aires, descendente do famoso presidente paraguaio. Formou-se em direito, mas o mundo das leis não o segurou. Com o agravamento da repressão na Argentina, Solano exilou-se no Brasil e na Europa, onde continuou produzindo, colaborando com autores como Ricardo Barreiro e Carlos Sampayo. Nos anos 2000, já mais velho, voltou a trabalhar em O Eternauta, desta vez com Pablo Maiztegui nos roteiros.
Ao revisitar O Eternauta em 1969, com a arte perturbadora de Alberto Breccia, e ao escrever uma sequência em 1976, Oesterheld consolidou a ideia de que não há salvação individual em tempos de crise. A resistência é coletiva, e o verdadeiro herói não é o que se destaca, mas aquele que persiste.
Oesterheld colocou um espelho diante da América Latina. Ele nos mostrou que, no final, todos somos Juan Salvo, tentando sobreviver à “neve mortal” do autoritarismo, do imperialismo e da violência estrutural. O Eternauta não é apenas uma história; é uma alegoria eterna da condição humana.
Ao lermos ou relermos a obra hoje, somos confrontados com uma pergunta incômoda: como enfrentamos nossas próprias neves mortais, sejam elas políticas, sociais ou existenciais? E, mais importante, temos coragem de ser o herói anônimo que persiste, mesmo diante do impossível?
Recepção e adaptação
A trajetória editorial de O Eternauta é uma dança cheia de intensidade e emoção, como um tango argentino. O clássico nasceu em 1957, com a arte de Francisco Solano López, para narrar histórias de sobrevivência e resistência. Embora ambientado no gênero da ficção científica, o enredo ultrapassou suas aparências iniciais, falando diretamente sobre a condição humana e os desafios sociais.
Em 1969, a obra ganhou uma versão mais ousada, com ilustrações de Alberto Breccia. O tom tornou-se mais político e experimental, o que despertou reações mistas. Enquanto alguns celebraram a inovação, os setores mais reacionários rejeitaram a abordagem, e a publicação foi interrompida antes de ser concluída.
A sequência de O Eternauta surgiu em 1976, em meio à convulsão política da Argentina. Solano López retomou a narrativa, conduzindo novamente o destino de Juan Salvo e ampliando o simbolismo da resistência coletiva contra a opressão.
Ao longo das décadas, a obra continuou a se transformar. Novos capítulos foram acrescentados em 1981, e releituras surgiram em 1997, 1999 e 2003, cada uma refletindo as preocupações e o contexto de seu tempo.
O Dia dos Quadrinhos na Argentina é celebrado em 4 de setembro, em homenagem ao editor e quadrinista. Depois de Mafalda, o Eternauta é o quadrinho argentino mais popular no país e fora dele.
Contudo, como acontece com muitas histórias de sucesso, os bastidores da obra foram marcados por conflitos. Após o desaparecimento de Oesterheld durante a ditadura argentina, O Eternauta tornou-se alvo de disputas legais. Direitos autorais foram contestados, royalties se perderam e batalhas judiciais prolongaram-se. Essa narrativa paralela nenhum roteirista poderia prever, a qual que se arrasta até hoje.
É com antecipação que, em 2025, O Eternauta ganhará vida na Netflix, com ninguém menos que Ricardo Darín no papel do herói ordinário com seu equipamento improvisado. Em português, temos agora uma nova edição, O Eternauta: edição definitiva. Pipoca e Nanquim, 2024.

SAIBA MAIS
Fraser, Benjamin, and Claudia Méndez. “Espacio, tiempo, ciudad: la representación de Buenos Aires en El eternauta (1957-1959) de Héctor Germán Oesterheld.” Revista iberoamericana 78.238-239 (2012): 57-72.
Foster, David William. El Eternauta, Daytripper, and Beyond: Graphic Narrative in Argentina and Brazil. University of Texas Press, 2016.
Oesterheld, Héctor Germán, and Alberto Breccia. El Eternauta y otras historias. Ediciones Colihue SRL, 1998.
Page, Joanna. “Intellectuals, revolution and popular culture: a new reading of El Eternauta.” Journal of Latin American Cultural Studies 19.1 (2010): 45-62.
Este texto foi escrito por Leonardo M. Alves, leitor voraz de quadrinhos que aproveita sua pesquisa em humanidades e ciências sociais para compreender como a arte envolve-se com a complexidade humana. Se quiser citar este texto use as seguintes informações em seu estilo pretentido:
ALVES, Leonardo Marcondes. “O Eternauta”. Ensaios e Notas, 2024. Acessado de https://ensaiosenotas.com/2024/12/21/o-eternauta/

Belo e profundo texto, amigo, sou um professor paulistano, amanhã, inspirado por suas palavras, darei uma aula sobre o tema individualismo x senso coletivo. Pedi para meus alunos de redação assistirem O Eternauta, a série, e suas palavras vão ajudar bastante. Grande abraço, e siga escrevendo, tem a rara habilidade de escrever de forma tão profunda quanto simples e direta.
Abs, Zé Augusto
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Obrigado.
Acabei de assistir a série. É comovente o quanto somos todos humanos, falhos e belos, diante da opressão.
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