Michel de Certeau (1924-1986) foi o pensador das dinâmicas complexas entre poder, cultura e cotidiano. Historiador da terceira escola de Annalaes, filósofo, teólogo jesuíta e cofundador da Escola Freudiana de Paris, de Certeau navegou pela interdisciplinariedade e uma curiosidade insaciável pela alteridade. Para de Certeau, compreender o cotidiano era compreender a própria essência da inventividade humana, que se manifesta não apenas nas grandes narrativas, mas também nos pequenos gestos que transformam o mundo de forma sutil e poderosa.

Sua obra mais emblemática, A Invenção do Cotidiano (1980), apresenta uma análise inovadora das práticas culturais, propondo um novo olhar sobre a relação entre poder e resistência. De Certeau parte da premissa de que, mesmo dentro das restrições impostas pelas estruturas sociais, os indivíduos encontram maneiras de subverter, reinventar e reconfigurar essas estruturas. De Certeau diferencia estratégias — ferramentas do poder institucional para moldar e controlar o espaço social — e táticas, que são as manobras criativas usadas por pessoas comuns para resistir a essas imposições. Ao ilustrar essa distinção, de Certeau recorre a exemplos simples, como andar pela cidade, interpretar textos ou cozinhar. Esses atos, à primeira vista banais, revelam uma dimensão de liberdade criativa que desafia a visão de uma cultura passiva e homogênea.
De Certeau também explora como as narrativas desempenham um papel central na construção da identidade e na resistência cultural. Em A Escrita da História (1975), ele examina como os relatos históricos são moldados por silêncios e exclusões, destacando que a história não é uma reprodução neutra de eventos, mas uma prática cultural carregada de relações de poder. Do mesmo modo, ele valoriza as histórias do dia a dia como formas de resistência e construção de significado. Para ele, essas narrativas não apenas descrevem o mundo, mas criam novos espaços de autonomia, onde os indivíduos podem imaginar e reivindicar outras realidades.
Certeau analisa a produção historiográfica como uma relação entre lugar social, prática e escrita. O lugar social refere-se ao contexto socioeconômico, político e cultural em que a pesquisa se insere, com suas instituições, métodos e topografia de interesses. A prática é o “fazer” historiográfico, mediado por técnicas e métodos que definem a cientificidade do trabalho. A escrita, por fim, é a representação final da pesquisa, que organiza e dá sentido aos dados coletados.
A historiografia, como ciência moderna, está ligada a instituições de saber e grupos de interesse. A produção do conhecimento histórico se dá em universidades e centros de pesquisa, com suas hierarquias, normas e jogos de poder. Esse lugar social molda as pesquisas, privilegiando certos temas e metodologias em detrimento de outros.
Certeau destaca o problema da verdade em história. A ideia positivista de uma verdade objetiva e acessível foi superada, dando lugar à noção de verdade presumida, proposta por Paul Veyne. O historiador, a partir de vestígios do passado, constrói uma representação da realidade, sempre sujeita a revisões e retificações.
A prática historiográfica se caracteriza pela transformação dos vestígios do passado em conhecimento histórico. As fontes, como cartas, documentos oficiais, etc., são interrogadas pelo historiador em busca de respostas para suas perguntas. Essa prática se fundamenta em três elementos:
- Centralidade das fontes: O trabalho do historiador se inicia com a busca e análise crítica das fontes.
- Desvio dos modelos: A pesquisa histórica se concentra cada vez mais nas diferenças e particularidades, desviando-se dos modelos e padrões generalizantes.
- História como crítica: O historiador atua como um crítico dos modelos explicativos, revelando suas falhas e contradições.
A partir desses elementos, a história se volta para a particularidade, a diferença e a alteridade, buscando compreender o passado em sua singularidade e distanciamento.
A escrita é o momento em que a pesquisa histórica se concretiza em um texto. É um processo que organiza, interpreta e dá sentido aos dados coletados. Certeau destaca alguns aspectos importantes da escrita da história:
- Paradoxo da escrita: A pesquisa é um processo infinito, mas o texto precisa ter um fim.
- Construção do enredo: O historiador organiza os eventos em uma cronologia, criando um enredo e uma narrativa.
- Tipologia da escrita: A escrita histórica é uma narrativa que se constrói a partir de fatos verificáveis, mas com elementos ficcionais.
- A situação e o efeito de real: O uso de notas de rodapé e citações insere o texto em um diálogo com outras obras e cria um “efeito de real”.
- Relação entre acontecimento e fato: O historiador seleciona os acontecimentos e os transforma em fatos históricos, atribuindo-lhes significado e inserindo-os em uma narrativa.
- O lugar dos mortos: A escrita histórica evoca o passado e dá voz aos mortos, mas também serve aos vivos, inscrevendo-os em uma continuidade histórica.
A operação historiográfica é um processo complexo que envolve o lugar social do historiador, suas práticas de pesquisa e a construção de uma narrativa escrita. O historiador, como “fabricante” da história, transforma os vestígios do passado em conhecimento, organizando-os, interpretando-os e dando-lhes sentido.
Certeau destaca a importância da comunidade científica na validação do conhecimento histórico. O historiador se dirige aos seus pares, buscando reconhecimento e legitimidade para seu trabalho. As normas e convenções da escrita acadêmica, como o uso de notas de rodapé e citações, garantem a cientificidade e o rigor da pesquisa.
Por fim, há o papel da história na construção da identidade e da memória coletiva. Ao narrar o passado, o historiador estabelece conexões com o presente, criando um sentido de continuidade e pertencimento.
Para além da historiografia, de Certeau questionou pressupostos. Um exemplo é a respeito do consumo. Sua abordagem desafiou paradigmas consolidados, especialmente no campo dos estudos culturais. Rejeitou a ideia de que os consumidores de cultura são passivos, argumentando que o ato de consumir é, em si, um exercício de criatividade e ressignificação. Ao apropriar-se de produtos culturais, reinterpretar textos ou reconfigurar práticas, os indivíduos expressam sua agência de formas que frequentemente escapam ao controle dos produtores culturais. Essa valorização da cultura popular como um espaço de resistência inspirou novos olhares sobre subculturas, mídia e práticas cotidianas.
Michel de Certeau não era apenas um teórico; sua prática intelectual refletia um compromisso com a interdisciplinaridade e a busca incessante por inovação. Como jesuíta, antropólogo, psicanalista e historiador, ele incorporou em sua obra a figura do caminhante — alguém que constantemente transita por diferentes campos do saber, desafiando fronteiras e explorando territórios inexplorados. Acreditava que o pensamento só floresce quando provoca um “movimento constante em direção à criação”. Esse desejo por novas perspectivas permeia toda a sua obra, que traça um percurso labiríntico de ideias que não se submetem a caminhos predefinidos.
A vida pessoal e acadêmica de Michel de Certeau reflete sua formação jesuíta e seu interesse pelo misticismo. Nascido na França, estudou em instituições religiosas católicas antes de se envolver na resistência contra o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Após se tornar padre jesuíta em 1956, iniciou uma pesquisa sobre os primórdios da ordem inaciana. Sua prática intelectual refletia um compromisso com a interdisciplinaridade e a busca incessante por inovação. De Certeau também foi ativo na psicanálise, e em sua abordagem enfatizava a escuta do outro, considerando a linguagem como fundamental para a constituição da identidade. O acidente automobilístico em 1967, que resultou na morte de sua mãe e afetou sua visão, redirecionou sua vida, levando-o a uma participação mais intensa na vida intelectual. Durante sua carreira, lecionou em várias instituições e contribuiu para debates sobre educação e cultura na França e América Latina. Em 1984, retornou à França após um período na Universidade da Califórnia, onde continuou suas atividades acadêmicas até ser acometido por câncer pancreático.
Embora sua abordagem tenha recebido críticas por ser difícil de operacionalizar em estudos empíricos, o impacto de sua obra é inegável. O pensador francês redefiniu o modo como enxergamos a cultura e o cotidiano, celebrando as pequenas, mas significativas, práticas de resistência que moldam a vida social. Michel de Certeau nos chamou atenção de que a inventividade humana está presente nos menores gestos, nas escolhas diárias e na constante capacidade de imaginar e criar alternativas.
SAIBA MAIS
- Certeau, Michel de. A Cultura no Plural. Papirus, 1974.
- Certeau, Michel de. A Escrita da História. Forense, 1975.
- Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Vozes, vol. 1 e vol. 2, 1974.
- Certeau, Michel de. Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Gallimard, coll. « Folio », 2002. Préface de Luce Giard, « Un chemin non tracé ».
- Certeau, Michel de. L’écriture de l’histoire. Gallimard, coll. « Folio », 2002.
- Certeau, Michel de. La politique de la langue. Gallimard, coll. « Folio », 2002. Postface de Dominique Julia et Jacques Revel.
- Delacroix, Christian, François Dosse, Patrick Garcia, et Michel Trebitsch, eds. Michel de Certeau, Les chemins d’histoire. Éditions Complexe, 2002.
- Dosse, François. Michel de Certeau, le marcheur blessé. La Découverte, 2002.
- “Michel de Certeau, histoire/psychanalyse. Mises à l’épreuve.” EspacesTemps, no. 80-81, 2002.
- Paranhos, Clarissa. “O conceito de ação simbólica: Michel de Certeau e a busca de sentido.” Intellectus 24, no. 1 (January-June 2025): 201-226. https://doi.org/10.12957/intellectus.2025.86428
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